Empregada doméstica, quarenta anos, bem
morena, é esperta e ajuizada, apesar de pouco instruída. Tem uma única filha de
dezoito anos, que é tão ajuizada quanto ela e que trabalha em um banco,
estudando à noite.
Caminhando, Benvinda experimenta uma
euforia que não sentia há anos. Está apaixonada... E também surpresa. Como é
que aquele “gatão”, bonito, másculo, de sotaque espanhol, “cismou” justamente
com ela, uma simples doméstica e bem mais velha do que ele?
— Coisas do amor? — ela se pergunta. — E
por que não?! — Certa vez, ouvira sua patroa, exibindo uma revista, comentar
com o marido, um juiz de direito, que determinado xeque das Arábias, de
passagem pelo Brasil, apaixonara-se pela camareira do hotel em que estava
hospedado, levando-a para se casarem no Oriente Médio.
É certo, Benvinda se lembra, que o
potentado árabe já tinha algumas esposas na terra dele. Mas isso era outra
conversa, uma questão de país, de diferenças legais que deveriam ser
respeitadas. Pelo que entendera, na terra dele o chefão podia ter tantas
esposas quanto pudesse sustentar. O que a ela interessava é que a tal
arrumadeira de hotel, num “estalo” — “as benditas loucuras do amor!” — havia se
tornado a rica terceira, quarta ou quinta — não lembrava ao certo — “madame” de
um homem importante. Com direito a luxo, empregadas, limusine, chofer, etc. E a
foto dessa arrumadeira sortuda, na opinião dela, não mostrava nenhuma invulgar
beleza. Era um rosto comum, mais ou menos como o dela, apenas mais jovem.
Agora, comparando os machos, Benvinda sorria, superior. O xeque, na foto, era
gordo, meio velhão, feio, enquanto seu amado era um apetitoso “gatão”, capaz de
seduzir, com um pé nas costas, qualquer “dondoca” rica. E também não devia ser
nenhum pobretão, tendo em vista as camisas caras e vistosas que usava.
Por falar em “dondoca”, Benvinda nutre
um intenso desprezo pelas moças que, de minissaia, ventilam demais suas “partes
pudendas”... Por sinal, ela gosta dessa expressão, a seu ver bastante “chique”,
usando-a com frequência... Acha-a elegante, desobrigando-a de mencionar
palavras feias. E chocara-se ainda mais com os primeiros maiôs “fio dental”
que, certamente, incomodariam, fariam cócegas “lá embaixo”, nas “partes
pudendas”. Jamais usaria tais “indecências”. E a filha, milagrosamente — porque
a segunda geração quase sempre reage contra a primeira — concordava com ela.
Certa vez, no tanque, lavando um desses
maiôs — ou corda? —, de propriedade de uma sobrinha de sua patroa, ficou
impressionada com o diminuto tamanho da peça. Naquela ocasião, não pôde deixar
de fazer algumas amargas especulações, de ordem odorífera, relacionadas com
aquela corda que permitia mostrar a bun..., digo, as “partes pudendas” tão
descaradamente. Mas o que mais a desconcertou foi o fato de que a usuária
daquele maiô era uma mocinha direita, sensata. Se ela era direitinha, pensava
Benvinda, por que não usava um maiô inteiro? Como podia a moda ter tanto poder?
E por que o Governo não tomava alguma providência?
Júlio — esse o nome do “gatão” — a
estava paquerando há quase uma semana, mas, até agora, não fizera nenhum avanço
mais apaixonado, um desses “amassos”, tão normais em todas as épocas. E isso a
preocupava um pouco. O “lance” dele, parecia, era apenas conversar,
preocupar-se com ela, um carinho mais próprio de homem velho, impossibilitado
de algo mais primitivo, concreto, carnal. No máximo, pegava na sua mão, mas sem
ficar assim muito tempo. E ela pensava: respeito é bom, claro, mas quando
demais, encuca.
Benvinda, não é uma sem-vergonha. É
apenas carente. Sofre um pouco com a prolongada abstinência mas jamais se
entregaria a um homem no primeiro ou no segundo encontro. Mas, após o terceiro
ou quarto, digamos, não havia por que manter tanta formalidade, aquele respeito
exagerado, que não mais é obedecido pelo resto da moçada. Aí já é demais! “Afinal,
não sou nenhuma Rainha da Inglaterra!”
Chegara a pensar, por um momento, que
havia alguma coisa errada em tanto acanhamento: — “Caramba! Será que ele é
“bicha’? Não tinha pensado nisso! Não, não é possível! Aquele jeitão másculo,
antebraço peludo, peito com cabelo saindo na abertura da camisa, barba cerrada,
voz de homem. Não. Bicha? De jeito nenhum!”
Benvinda conhecera, à maneira bíblica,
poucos homens, no máximo oito. Decepcionara-se terrivelmente quando, bem jovem,
já grávida de sua filha, ficara sabendo que o namorado era casado e vivia com a
mulher. O choque foi demais. Esperava casamento, ou pelo menos uma amigação
decente, mas, em vez disso, restara-lhe apenas a solidão e um ventre crescido.
Pensara até em se matar. Ou abortar. Mas fora amparada pela patroa de então,
mulher bondosa, católica, esclarecida, firme nas suas convicções e que a
dissuadiu de cometer um pecado. Mataria um ser inocente que ainda poderia vir a
alegrar sua velhice. E, realmente, a filha só lhe dera alegrias, ajuizada como
ela só.
Desse relacionamento, restou uma opinião
bem amarga quanto ao caráter dos homens em geral: “mentirosos e egoístas”.
Depois do nascimento da filha, só “saía do sério” de vez em quando, quando sua
libido começava a apitar igual a uma panela de pressão, quase explodindo.
Chegando a coisa a esse ponto ia a alguns bailes populares — forrós, gafieiras,
pagodes — onde sempre conseguia uma companhia provisória; igualmente
necessitada de descarregar a libido sem responsabilidades. Não obstante mais feia que bonita, tinha um
corpo bem modelado pela involuntária ginástica doméstica, forçada, varrendo,
lavando, esfregando — a “academia” dos pobres, que ganham para “malhar”.
Infelizmente, saía desses encontros
libidinosos apenas fisicamente satisfeita. Católica por instinto, sem qualquer
doutrinação, não conseguia se livrar do sentimento de culpa após tais encontros.
Para limpar a alma rezava e prometia não mais se permitir tais liberdades.
Já trocara três vezes de religião, em
busca de uma paz que nunca era alcançada. E assim ia levando a vida até que,
inesperadamente, surgira aquele rapaz atraente e respeitador. Conhecera-o
casualmente, ao sair da residência em que trabalhava em um fim de tarde. Ele
estava do outro lado da rua, procurando um endereço impossível de encontrar
porque não havia aquele número. Vendo-a sair da casa, pedira sua ajuda. E assim
começara o casto e inesperado romance.
O que deixava Benvinda “encucada” era a
mania dele de fazer perguntas. Impossível alguém mais curioso: — “Você é feliz?
Tem certeza?” — Essa parte ela achava meio idiota. — “Ganha bem? Teu patrão não
podia te pagar melhor? Soube que ele recebeu, de herança, alguns dias atrás,
várias barras de ouro e milhares de dólares... Ele precisa ter cuidado e
guardar bem, senão você sabe o que pode acontecer... Ele já pensou em guardar o
ouro no banco?”
Tais perguntas a deixaram preocupada.
Perguntou como é que ele sabia da herança, mas o rapaz explicou que soubera
desses fatos por pura coincidência, uma vez que tinha um amigo que era
funcionário do Fórum, trabalhando justamente no cartório em que corria o
processo de inventário do pai do juiz. Contando a esse funcionário que tinha
uma namorada naquela rua, trabalhando na casa de um juiz, o rapaz perguntara o
nome do juiz. Informado, mencionara a herança. O funcionário comentara o fato
porque, no geral, os herdeiros não mencionam heranças em ouro e dólares.
A explicação era plausível, mas mesmo
assim Benvinda continuou inquieta. Mas, por outro lado, se Júlio fosse um
bandido, um assaltante, não precisaria fazer tanto rodeio. Era só sacar um
revólver e dominar o patrão na hora certa, quando chegasse de carro à noite ou
quando saísse de manhã.
Ela terminava tais reflexões quando chegava à casa da patroa,
situada em bairro de classe média alta.
Mal ela enfiou a chave na fechadura, sentiu uma mão, vinda de
trás, apertar fortemente seu braço esquerdo, ao mesmo tempo em que o cano de um
revólver comprimia sua costela.
Atrás dela, estavam dois assaltantes, ambos com meias de seda
envolvendo a cabeça. Foi empurrada para a frente e em segundos os três já
estavam no interior da casa.
Ao susto, seguiu-se uma difusa fraqueza. Benvinda sentiu as
pernas moles. Por pouco não soltou a urina, reação que lhe era comum em
momentos de grande medo. Apesar de sua esperteza natural, a cabeça emperrou,
oca, dominada. Sua boca foi tapada com firmeza pelo mesmo homem que a agarrara
por trás e agora a apertava de frente.
— Nem um pio, tia! — foi a advertência firme, embora
sussurrada, do bandido que a dominava. — Se eu atirar, teus miolos vão pro
espaço! — E ela, imaginativa, “viu” nitidamente seus miolos sangrentos, aos
pedaços, voando em câmera lenta pela sala de visitas.
— Onde é que teu patrão guardou o ouro e os dólares? —
indagou o mesmo bandido junto ao seu ouvido. Enquanto isso, o comparsa fazia
uma rápida inspeção na parte térrea do belo sobrado.
— Que ouro? — murmurou a doméstica, numa surpreendente
retomada da esperteza.
O bandido não pôde deixar de achar graça. Parecia pouco
tenso. Com calma, sem desejo, bolinou-a com a mão esquerda, massageando seu
seio, enquanto sorria por baixo do disfarce.
— Parabéns! Nunca pensei que a tia se recuperasse tão
depressa! Só que a hora da brincadeira acabou. Sei que teu patrão tá com ouro e
dólar. Tu tá querendo bancar a Joana D’Arc? Olha que nós te estupramos e ainda
torturamos todo mundo aqui! — E, dizendo isso, pressionou fortemente o cano do
revólver contra a narina esquerda de Benvinda, machucando-a com a alça de mira.
Os olhos dela se encheram de lágrimas, mas não se atreveu a gritar.
— Nem precisa responder... Só pode estar
no quarto... Vamos subir a escada bem devagarinho; você na frente, e eu com a
arma na tua cabeça. Chegando na porta do quarto, você vai perguntar ao patrão
se ele quer tomar café. Faz de conta que você tá levando uma bandeja Entendeu? Ou precisa levar umas porradas? Se
você obedecer, eu te deixo viva. Aliás, deixo todos vivos! Quero só os dólares
e as barrinhas de ouro. Por isso, não banca a heroína.
Ela assentiu com a cabeça, dominada, e
foi sendo empurrada, sem ruído ou atropelo, enquanto subia a escada que
conduzia ao andar superior.
Os três pararam juntos à porta do quarto
do casal, Benvinda na frente. Ela recebeu uma cutucada na nuca com a ponta da
arma e um sinal de que estava na hora de representar o seu papel de garçonete.
Perguntou, em voz bem alta:
— Dr. Nelson... o senhor não quer tomar
café? Trouxe na bandeja.
Benvinda, apesar de esperta, ou
justamente por isso, não foi uma boa atriz. A pergunta saiu com voz esganiçada,
estranha, uma taquara rachada.
Seu patrão, de pouco mais de quarenta
anos, juiz de Vara Criminal, também professor de Direito Penal numa Faculdade
particular, acordou com o som da taquara falante. Sem dificuldade, porque essa
era a hora em que habitualmente acordava. E logo estranhou duas coisas:
primeiro, a alteração na voz da empregada; segundo, o oferecimento do café na
cama, coisa que nunca ocorria. Por que essa novidade agora? Mesmo assim, não
pensou imediatamente em assalto, apenas agradeceu:
— ... Obrigado, Benvinda, mas vou tomar o
café lá em baixo, como sempre.
Ouvindo isso, o bandido “principal”,
segurando a empregada — o outro ainda não abrira a boca — hesitou um pouco. Não
esperava essa resposta, mas pensando depressa sussurrou no ouvido da doméstica:
— De novo... Oferece de novo!
E Benvinda insistiu: — O senhor tem que
tomaaaar! — gritou, quase gemendo, desesperada.
Aí o “desconfiômetro” do juiz tocou como
um despertador antigo, bem barulhento. — Aí tem coisa! — pensou, o coração
batendo forte.
O juiz saltou
da cama e, sem calçar os chinelos, na ponta dos pés, aproximou-se da porta. Bem agachado, tanto quanto possível,
espiou pela fresta. E constatou, só pelas sombras, que não sendo Benvinda um
inseto, com várias pernas, havia outras pessoas no corredor. Essa conjugação de
abundância “pernil” com a imposição berrada para que tomasse café na cama, só
podia ser mais um capítulo das perigosas “histórias reais de crimes” que lia
todos os dias nos autos de processo.
— Um
momento, já vou abrir a porta! — o juiz gritou, procurando dar à voz um timbre
normal. Imediatamente aproximou-se da mulher que, já de pé, imóvel, o encarava
com os olhos arregalados, consciente da situação. Junto ao ouvido dela, ele
sussurrou: — Tranque-se no banheiro. Depressa! Sem barulho!
Em seguida, deu alguns passos na direção
do guarda-roupa embutido, onde mantinha uma espingarda de caça de dois canos,
sempre carregada, apesar do risco implícito nessa prática. Assim fazia porque,
como juiz, ouvira inúmeros relatos de vítimas de roubos que não tiveram tempo
de carregar suas armas quando os ladrões já estavam dentro da casa.
O juiz pegou a espingarda e voltou para
a cama, onde se deitou e escorou a coronha contra a cabeceira. Armou o cão da
arma e aguardou, direcionando os canos para o meio da porta. Nesse momento, sua
mulher já estava trancada no banheiro.
A excessiva demora e o suspeito silêncio
convenceram o bandido principal que o dono da casa estava tramando alguma. Era
agora ou nunca. Empurrou a empregada para o lado e desferiu três fortes
pontapés na porta, chutes que estrondearam pela casa silenciosa. No quarto
chute, a porta abriu-se violentamente.
Nesse exato momento, o juiz apertou um dos gatilhos. Aí,
aparentemente — pelo que se constatou depois nos autos do processo —, o bandido
da frente, por uma razão qualquer, virou o rosto. Isso porque seu maxilar
inferior foi arrancado, quase inteiro, pela pressão conjunta das pequenas
esferas, de aço, projetadas pela potente arma de caça, em curta distância.
O tiro teve também o efeito de um violento murro de
“peso-pesado” em um combalido “peso-mosca”, pois o bandido da frente foi jogado
para trás, levando de roldão o companheiro e a própria Benvinda, que não tivera
tempo de descer a escada, porque estava meio abestalhada.
Os três rolaram pela escada, aos trambolhões, enquanto o
involuntário caçador de “queixadas” se levantava da cama e se preparava para um
eventual segundo disparo.
Do alto da escada, o dono da casa observou que, lá embaixo,
nenhum dos dois bandidos segurava, naquele momento, qualquer arma. E estavam
tontos. Um revólver estava caído junto à porta do quarto, no andar de cima, e
um outro no degrau mais alto, ambos fora do alcance dos ladrões.
Não obstante sem a mandíbula, o bandido que parecia liderar o
roubo conseguiu se erguer, cambaleando, confuso, olhos arregalados, uma mão
segurando o ponto mais baixo do corrimão. Com a outra mão, tateava o quase
buraco onde antes havia um queixo. Do buraco, fluía grande quantidade de
sangue. Seu companheiro, também ferido, mas não muito, procurou, solidário,
arrastar para longe seu colega de empreitada, abraçando-o pela cintura e
colocando o braço do ferido por cima de seu ombro. Arrastaram-se na direção da
cozinha, certamente visando escapar pelo quintal da casa, onde havia um muro
não muito alto. Só pensavam agora em escapar.
Com máxima cautela, o patrão de Benvinda
os seguia de longe, atento ao que acontecia, cauteloso quanto à eventualidade
de haver um terceiro bandido dando apoio aos primeiros. Mas logo convenceu-se
de que eles estavam sozinhos.
Os ladrões chegaram até o muro do quintal, que dá para um
terreno baldio. O bandido menos ferido rapidamente conseguiu trepar no muro e,
montado a cavalo, com uma perna de cada lado, tentava erguer o companheiro. Mas
seu esforço era inútil. O homem sem queixo não tinha força. Parecia zonzo. Mal
conseguia ficar de pé. A perda de sangue, acrescida do violento trauma, o
enfraquecera de tal modo, que ele não fazia mais que erguer debilmente os
braços e emitir uns grunhidos — expressão de dor ou explicação de que lhe
faltavam forças. Posteriormente, quando da autópsia, o dono da casa ficou
sabendo que a carga de chumbo dilacerara sua língua.
O bandido que estava em cima do muro explicou ao companheiro,
aos gritos — foi o que o juiz entendeu — que precisava fugir, deixando-o ali,
mas que ficasse sossegado porque retornaria em seguida, bem armado, para
levá-lo.
O outro, contudo, não parecia aceitar essa solução. Queria
que o companheiro o levasse logo. Mesmo fraco, protestava, roncando e tossindo.
Até que o homem de cima do muro, exasperado, fixou o olhar no dono da casa.
Ergueu o punho com ódio e gritou: — Volto para te matar!
Nem bem esse ladrão ergueu a perna, preparando-se para deixar
o muro, o dono da casa efetuava o segundo disparo, acertando-o em cheio. Sendo
maior agora a distância, a carga de chumbo pôde melhor se espalhar, atingindo
também o seu companheiro, que, cambaleando, deu uns passos para longe do muro e
caiu emborcado numa pequena piscina. O outro ladrão caiu morto do outro lado do
muro.
Quando a polícia chegou, meia hora depois, Benvinda já estava
sendo medicada — nada grave — e narrava ao patrão o ligeiro e castíssimo
“namoro” que mantivera com aquele rapaz, tão perguntador, e que estava morto do
outro lado do muro. Arrancada a meia do rosto desse bandido, ela logo
reconheceu o casto namorado. No início do roubo, ele não proferira uma só
palavra justamente para evitar sua identificação. E no inquérito verificou-se
que os dois bandidos eram irmãos, nascidos no Paraguai e com antecedentes
criminais tanto aqui como lá.
Quanto ao juiz, o traumático evento lhe foi particularmente
amargo. Até então, no que se refere a mamíferos, só matara uma capivara em Mato
Grosso. E sentira depois um certo mal-estar, observando o estado dilacerado do
animal.
Contra seus princípios — era um homem direito —, mas por
compreensível instinto de defesa, viu-se obrigado a alterar um pouco os fatos
quando os relatou ao Delegado de Polícia que compareceu ao local. Disse que o
ladrão, no muro, fizera menção de sacar uma arma para nele atirar.
Aquele segundo disparo de espingarda — ele sabia, estava
escrito em todos os tratados de Direito Penal — não mais configurava a legítima
defesa, pois já havia cessado o perigo. A ameaça do ladrão era uma simples
hipótese. Mas, como cidadão, ele se perguntava, procurando tranquilizar a
consciência: — “E se o bandido voltasse para cumprir sua promessa? Não era meu
dever proteger meu lar, mulher e filhos?
Alguns dias depois, pediu para ser removido para uma Vara
Cível. Sentia-se traumatizado, sem equilíbrio para julgar assaltantes..
Continuou lecionando Direito Penal, mas seus alunos
queixavam-se de que, não obstante fosse um professor exigente, detalhista,
tornava-se evasivo e sumário quando explicava os requisitos formais da legítima
defesa. Notadamente o item “agressão atual ou eminente”. Não parecia se sentir
bem explicando o ponto. E passava logo para outro tema.
Um mês depois, mudaram para um apartamento, onde não foram
assaltados até agora.
Quanto à Benvinda, passou vários meses tristinha,
decepcionada consigo mesma. Toda vez que se mirava num espelho, parecia-lhe que
uma jumenta a encarava.
FIM
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