terça-feira, 3 de abril de 2018

Juristas de peso são “analfabetos funcionais” da Constituição ou hermeneutas “sabidos”?


O mais provável é que, inteligentes como geralmente são, alguns juristas entendem perfeitamente o significa das palavras mas interpretam-nas conforme uma opção política que preferem não revelar. Por exemplo, simpatizam com o ex-presidente Lula mas como não podem, ou querem, dizer isso às claras, interpretam um inciso legal de modo aparentemente “frio, técnico”, distorcendo o sentido normal das palavras.

Refiro-me à interpretação do art.5º, inc. LVII da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Não afasto totalmente a hipótese de que um surto de analfabetismo funcional, — decorrente de simpatia política — possa ocorrer mesmo na cachola dos mais reputados juristas brasileiros quando leem a frase “considerado culpado”, no art. 5º, inc. LVII da Constituição federal. Digo isso porque mesmo aqueles favoráveis à prisão obrigatória na condenação da segunda instância, em vez de argumentar simplesmente, insistindo com o claro texto da Constituição Federal, gastam linhas e linhas com considerações morais sobre a impunidade resultante do abuso de recursos protelatórios, com a desigualdade de tratamento penal entre réus pobres e ricos e com o Direito Comparado, informando que alguns países do Primeiro Mundo até prendem após a decisão de primeira instância.

Atente-se para o que diz o inciso constitucional em discussão. Ele não afirma que ninguém poderá ser preso (detido) antes do trânsito em julgado. Diz apenas que ninguém será “considerado’ — “rotulado”, “classificado como” — culpado antes do trânsito em julgado. Isto é, solto, ou detido, no decorrer do processo, o acusado ainda não é reconhecido juridicamente como “culpado”, isto é, como autor do crime enquanto sua sentença não transitar em julgado — ou porque já esgotou todas as instâncias possíveis, ou aceitou sua condenação, deixando de utilizar os recursos disponíveis na legislação.

Uma prisão, de qualquer tipo, em flagrante ou cautelar, é mero incidente dentro de um processo, algo muito comum. Algumas prisões em flagrante são anuladas, prosseguindo o processo, podendo o réu ser novamente preso — havendo motivo para isso —, e depois de novo solto, etc. Esse “entra e sai” da prisão, não o transforma em “culpado - não culpado - culpado - não culpado” em que o resultado final pode ser de absolvição ou condenação. Se contra esta não cabe mais recurso, só então existe, juridicamente, um culpado. A prisão após condenação em segunda instância, portanto, não é inconstitucional porque com ou sem ela o réu ainda não é considerado culpado, podendo continuar recorrendo. Se for depois absolvido no STJ, sem novo recurso da acusação, sairá da prisão, tão “não-culpado” como já era antes, mesmo estando (precariamente) preso.

Repetindo, mesmo condenado na segunda instância ele ainda é apenas um acusado, não o autor do crime mencionado na denúncia. Só se transformará em “criminoso” se, podendo recorrer, no prazo legal, ele se omite ou perde o prazo
Se ouvi bem a entrevista em março último, no Roda Viva, do juiz Sérgio Moro — pessoa que admiro imensamente pelo caráter, competência e inteligência —, ele pareceu entender que uma emenda constitucional traria tranquilidade ao tema agora em discussão, que tanto agita o mundo político e os anseios da população.

Na verdade, não é imprescindível uma modificação da Constituição a respeito da prisão na 2ª. Instância, porque a literalidade do inciso em exame nada fala sobre prisão processual em decisão de qualquer instância, seja de 1ª, 2ª ou 3ª. Seria apenas útil uma autorização explícita da Constituição autorizando essa prisão “processual” já na 2ª.instância.

Ocorre que nossa ossificada e reumática Constituição Federal, recheada de “cláusulas pétreas” — diretas e indiretas — diz no seu art. 60, § 4º, inc.IV que “Não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”. E há quem considere que todos os direitos mencionados no art. 5º, são considerados direitos individuais, portanto cláusulas pétreas, intocáveis, só modificáveis com outra Constituição. Uma aberração lógica, porque não tem sentido trocar uma Constituição inteira por outra para modificar apenas um artigo, ou inciso constitucional.

A melhor solução, neste grave momento do país, é manter a jurisprudência do STF, mesmo sendo ligeiramente majoritária, evitando jogar na lixeira um imenso trabalho dos Tribunais, por culpa de uma legislação doentiamente fraca, permissiva, de quase eternização dos processos criminais, bastando o réu querer. O precedente da exceção para um ex-presidente estimulará dezenas de outros interessados em arrancar a tornozeleira. O STF, já afogado em processos, não terá tempo para mais nada.

Nossa legislação processual, tanto no crime quanto no cível, ignora — a clássica tragédia jurídica brasileira — o sábio conselho de Voltaire quando afirmou que, nos assuntos humanos, “A vantagem deve ser igual ao perigo”. Qual o “perigo” para o réu do colarinho branco, quando, sabendo-se culpado, interpõe dezenas de recursos para ganhar tempo? Quase nenhum. Será menor que a “vantagem” da demora — aprescrição ou o envelhecimento do cliente, se estiver ainda vivo quando findar o processo. O que gastar com sua defesa, embora muito, será apenas uma fração do que conseguiu amealhar.

Encerrando, é literalmente óbvio que nossa Constituição não proíbe, não considera inconstitucional a prisão do réu, na primeira ou segunda ou terceira instância, desde que lhe permita continuar se defendendo.

É claro que muito poderia ser dito aqui, mas quanto mais longo um artigo, pior o convencimento, porque o não lido nada convence.

(03-04-2018)

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