Há limites para a cegueira política? Há, mas não no Brasil.
Pergunta-se: depois de um ano inteiro, 2016, de paralização do país, milhões de
olhos e ouvidos grudados na televisão, acompanhando o julgamento do impeachment
de Dilma Rousseff, seria sério ou cômico o risco da chapa inteira “Dilma-Temer”
ser cassada, com perda dos direitos políticos de ambos? Erros de um Presidente obrigam
a punição “automática” do seu Vice? Não, no presente caso, conforme exposição
abaixo.
Não é, por acaso, entendimento milenar —até mesmo divino, universalmente
religioso —, que todo ser humano só pode ser julgado pelos seus atos? Quando se
condena um marido por algum malfeito deve-se condenar automaticamente a esposa
só porque, “afinal”, moravam sob o mesmo teto? Não se aplica, nesses casos, a
teoria acusatória do “domínio do fato”, porque o vice-presidente não dominava
coisa alguma.
Não é público e
notório — revelado em dezenas de fotos, em solenidades — que Temer se sentia
marginalizado, desimportante, não consultado por Dilma, que nem mesmo o
convidava para participar das decisões governamentais? Não chegou ele a ponto
de protestar, publicamente — bem antes do impeachment —, que sempre foi
considerado, por Dilma, a “imperatriz”, uma espécie de zero à esquerda?
Os olhos, a expressão crispada da face, a “linguagem do
corpo” — tanto de Temer quanto de Dilma, quando sentados próximos —, não
mentiam, não escapavam das fotos dos repórteres. E mesmo assim, com tanta
evidencia de desacordo — inicialmente apenas facial mas finalmente também
verbal, explícito, até humilhante para o vice confessar — pretende-se condenar,
cassar Temer porque teriam “ambos”, de comum acordo, cometido ilícitos?
Se houver essa cassação de Temer, aplicando um injusta e
diminuta jurisprudência — quatro ou cinco casos apenas —, teríamos o triunfo do
“comodismo hermenêutico” no julgamento de um caso que mereceria forte reflexão
— e não uma solução “mecânica”, “estereotipada”, — tendo em vista a dificílima
situação econômica e política do país.
É antiga a expressão latina “Fiat justitia, aut pereat
mundos” (Faça-se a justiça embora o mundo pereça”). Adágio tão antigo quanto
absurdo — se interpretada ao pé da letra. Nem o mundo, ou qualquer país, deve
perecer, autodestruído, porque no manejo interpretativo das leis — sempre com
algum tipo ou grau de imperfeição — o judiciário chegou a uma estranha
conclusão que só vai arrasar sua economia. Tal seria o caso do Brasil, no
presente momento, com um enorme desemprego, desconfiança de possíveis
investidores e previsível demora judicial decorrente dos recursos de Temer
visando, com toda razão, solução favorável no STF, permitindo que seu governo
tenha o êxito possível até a próxima eleição presidencial. Temer pretende
apenas consertar a casa, não nela morar indefinidamente. Quer ser bem lembrado,
como um político realizado, que fez o que era possível fazer, nas
circunstâncias, com suas qualidades e defeitos, como todo ser humano. Não é um
líder carismático, grande orador, mas o mundo já está cansado de “carismas” que
só terminaram em tragédia ou retrocesso. Hitler, Stálin, Trotski, Fidel Castro,
e muitos outros. Ângela Merkel não tem presença nem oratória. Não “eletriza”,
mas é hoje a maior estadista da Europa.
Pondere-se ainda que havendo a cassação inteira da chapa
Dilma-Temer — sem a suspensão dos direitos políticos de Temer, porque há
precedente nesse sentido —, a eleição do novo presidente será indireta, com
voto dos atuais deputados federais, que não veem Temer como pessoa desonesta.
Não privado de seus direitos políticos, Temer, eventualmente cassado, poderá se
candidatar e se tornar, de novo, presidente, pela eleição indireta. E a
comunidade internacional só rirá desses “brasileiros trapalhões que são
competentes apenas em uma coisa: proclamar ao mundo seus ‘podres’. Fazendo aquelas
coisas erradas que nós — fora do Brasil — também fazemos, há séculos, mas não
ficamos divulgando na mídia, como foi o caso da ‘carne fraca’. O velho Bismark
já dizia que quem gosta de leis e de salsichas não deveriam saber como são
feitas essas duas coisas”.
A diminuta jurisprudência atual — de cassar a chapa inteira,
sem se interessar pela comprovação da culpa ou inocência do vice — é fruto de
uma espécie de comodismo inevitável, não de má-fé: a dificuldade, quase
invencível de discernir concretamente, em um processo judicial, a conduta de um
e outro na administração do país. Uma estratégia jurídica, prático-teórica,
porque na justiça não é possível o juiz encerrar um julgamento alegando que “que
não há, nestes autos, prova suficientemente clara de qual parte, autor e réu,
está com a razão”.
Separar a culpa de qualquer presidente — ou governador, ou
prefeito —, do seu vice é uma tarefa probatória gigantesca e minuciosa, quase
impossível de ser realizada em qualquer tribunal. Ainda mais nos Tribunais, que
não examinam a prova, somente decidem se houve ou não erro na aplicação do
direito. Por isso, a diminuta e jovem jurisprudência atual inclinou-se para a
solução apenas prática: — “Cassa-se a chapa inteira e pronto, porque a Justiça
não pode parar, discutindo miríades de detalhes”! Simples, não?
Simples, sim, mas não justo, e altamente lesivo ao interesse
momentâneo do país. Neste dramático momento o Brasil precisa, urgentemente, transmitir
aos empresários — interna e externamente — a confiança de que agora, no alegre
“país do carnaval, do futebol, das mulheres bonitas e das obras inacabadas” há
um esforço não demagógico para colocar as finanças em ordem. Esforço sem pensar
apenas no médio e longo prazo mas também no hoje, com algumas medidas
emergenciais tópicas para evitar a total paralização da economia e a revolta
popular.
No caso em exame, de Dilma-Temer, há fundamentos fortes para
não aplicar essa diminuta jurisprudência, com a qual pretende-se cassar o atual
presidente. Primeiro, como já disse, a prova visual, fotografada e ouvida, da divergência
da dupla. Ele simplesmente não era ouvido, nem mesmo convocado para as decisões.
Não agiam em consonância. Segundo, porque o único fato concreto contra Temer
foi o fato dele ter, em março de 2014 — segundo o último depoimento de Marcelo
Odebrecht — solicitado doação da empreiteira para ajudar o PMDB na campanha
eleitoral da reeleição de Dilma e ajudar um candidato da Fiesp, do mesmo
partido, ao governo de São Paulo. Não havia ilicitude nisso. Lembre-se que
doações para campanhas podem ser feitas com as mais variadas motivações.
Pode-se doar por idealismo, por ser amigo pessoal do candidato, por posição
política de esquerda, centro ou direita, por interesses escusos de retribuição,
ou por coação contra construtoras: “se não doar, sua empresa não será mais
contratada”.
Em março de 2014, data do referido cheque, a legislação
eleitoral permitia que empresas fizessem doações para campanhas eleitorais.
Todos, todos, todos, os partidos de algum significado eleitoral, precisavam de
dinheiro para serem bem-sucedidos na tarefa de todo partido: conseguir a
vitória. Segundo o depoimento mais recente de Marcelo Odebrecht, Temer
pediu-lhe uma contribuição para a campanha em que ele, Temer, figurava como
vice. Não exigiu uma quantia nem ameaçou Marcelo dizendo que, caso não doasse,
sofreria represálias. Feita a doação, ela foi registrada na Justiça Eleitoral.
Essa doação foi feita, insista-se, em março de 2014. Nessa
data a Odebrecht ainda gozava de uma reputação normal, como empreiteira. Era
até mesmo motivo de orgulho para o país ter uma empreiteira com tantas obras no
Brasil e no exterior, com capacidade técnica de primeiro mundo. Só com as
investigações posteriores e decisões da Lava Jato é que ficou conhecido o lado
mais sombrio dessa empresa que empregava dezenas de milhares de funcionários e
operários.
Não se pode presumir que o vice Temer — sempre marginalizado
do “miolo” administrativo, conduzido por Dilma —, soubesse das operações
obviamente secretas, conduzidas pela presidente. Mesmo pedindo, ou sugerindo
contribuições para a campanha de reeleição, como faziam todos os demais
partidos — exceto os insignificantes, e não por abstinência virtuosa — não teria
sentido exigir que Temer dissesse aos empresários: — “Está bem, eu, Temer, vou aceitar
essa doação, mas com uma condição: a de que o senhor jure solenemente — e
prove! — que o dinheiro que nos entrega agora, para nossa campanha, não tem
origem ilícita, não é fruto de superfaturamento de obras, ou Caixa 2. O senhor
jura que não é corrupto, nem criminoso ou sonegador de tributos?” Seria
inconcebível um diálogo tão ridículo.
Àquela época, certamente, todo cidadão, em todos os países
de regular informação, suspeitavam ou presumiam que doações eleitorais de vulto
não eram feitas apenas por simpatia com a personalidade ou as ideias do
candidato, embora isso possa também ocorrer. Havia, sempre, um certo risco
moral em qualquer doação para fins eleitorais. Inclusive o risco da ingratidão
do candidato, após ser eleito.
Consta que Jânio
Quadros, após ser eleito governador de São Paulo, passou a ser assediado por um
cidadão ambicioso que, prevendo o sucesso eleitoral de Jânio, utilizara vários
veículos de sua empresa, com alto-falantes, fazendo propaganda do candidato.
Jânio foi eleito mas nada de chamar seu “propagandista” para ser nomeado para a
função que tanto ambicionava, a de chefe de uma fiscalização que, em mãos
desonestas, o enriqueceria rapidamente. Durante longo período Jânio apenas se
esquivava da pressão do ex-cabo eleitoral, não o recebendo no palácio. Até que,
impossibilitado de continuar fugindo, disse-lhe francamente que não iria
nomeá-lo. O cidadão, revoltado com a ingratidão, disse-lhe que era sua
obrigação nomear porque assim prometera, antes de eleito. Ao que Jânio
respondeu: — “Quem prometeu foi o candidato Jânio Quadros, mas quem nega essa
nomeação é o governador Jânio Quadros”. Esse relato foi feito por um
ex-assessor de Jânio.
Em suma, se um político que recebeu doação, para fins
eleitorais, sem saber da origem ilícita do dinheiro doado, não pode, anos
depois, ser punido porque constatou-se que o doador tinha Caixa 1 e Caixa 2 e doara,
em parte, com o dinheiro do Caixa 2. Como o político poderia, à época da
doação, saber disso?
A se pensar o contrário, nenhum recebimento de quantia — em
qualquer tipo de transação comercial lícita — teria segurança jurídica. Isso
porque poderia surgir, algum tempo depois, uma terceira pessoa cobrando judicialmente
o réu porque aquele dinheiro que ele, réu, recebera, em pagamento de uma dívida
verdadeira, “não valia para ele”, autor da ação, porque o pagador pagara o réu
com um dinheiro que na verdade não era dele. O mesmo se aplica ao caso das
doações eleitorais. A menos que seja comprovado que o donatário sabia que
aquele dinheiro tinha origem ilícita, que não se presume, no caso.
Em suma, cassar Temer por causa de erros de Dilma — quando
Temer era isolado do que ocorria e se decidia secretamente, será condenar a
população brasileira a prosseguir nessa tortura lenta do desemprego e desânimo,
por muitos meses, jogando por terra todos os sacrifícios até o momento
suportados pelas classes média e pobre do país. Daí a menção inicial, do
“Pereat mundus”. O Brasil não merece perecer, tropeçando juridicamente nas
próprias pernas.
Juízo, juízes...
(02-04-2017)
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