Não, não vou dizer aqui que o
capitalismo é o Capeta, fonte de todo o mal, e por causa dele todos os países
sofrerão na carne, digo, no bolso, “naufragando” nas dificuldades concebidas no
útero das hipotecas americanas. Neste artigo, o “Titanic” não metáfora, é o
próprio, o navio, aquele do filme, o transatlântico de luxo que afundou
em 1912, levando para fundo do mar 1.522 pessoas. “Onde, então, a correlação?”
— perguntará leitor, impaciente com rodeios.
A analogia entre esse naufrágio e o
capitalismo está na comprovação de que toda forma de energia — elétrica,
térmica, atômica ou humana (ambiciosa, voraz mas incentivadora da produção) —
precisa de algum controle. E este é mais eficaz se externo — estatal ou seu
equivalente — do que interno, exercido pelos próprios interessados
capitalistas, que optam, claro, por uma “meiga” auto-regulação. O dogma de que
“o mercado se auto-regula” já demonstrou sua fragilidade, porque o egoísmo é
inerente a todo ser humano, com exceção dos santos — uma espécie de
ornitorrinco moral, destinada à extinção. De fato, o mercado tem um inegável
poder de se auto-regular, mas apresenta brechas, pontos fracos, como ocorreu no
naufrágio do Titanic, que matou tantos porque, à época, confiava-se um tanto na
“auto-regulação” dos ambiciosos proprietários do navio. No início do século a
regulamentação das construções navais estava algo atrasada, em comparação com o
grande impulso na utilização dos grandes transatlânticos. A intensa
movimentação de pessoas entre a América e a Europa era obviamente marítima, não
aérea, como hoje.
A revista “Newsweek”, de 20-10-08 traz,
na pág. 56, um artigo, ou resenha, do livro “Titanic’s Last Secrets” (Últimos
Segredos do Titanic”) escrito por Brad Matsen. A resenha, inteligente e
detalhada, foi redigida por Jeneen Interlandi. No livro, o autor —
aparentemente com argumentos irrespondíveis — sustenta a tese de que se o navio
tivesse sido construído segundo a especificação da sua planta não teria
afundado tão rapidamente, como ocorreu. Haveria tempo dos passageiros e
tripulantes — todos eles — serem transferidos para outros navios que,
distantes, tentavam se aproximar antes que o Titanic afundasse de vez. Mas não
chegaram a tempo. Entre o momento da colisão — na verdade um extenso “raspão”
cortante, lateral, no iceberg — e o naufrágio passaram-se exíguas duas horas e
quarenta minutos. No fator tempo, não propriamente na colisão, reside a
tragédia do número imenso de mortos.
O autor do livro menciona que enquanto
o Titanic estava sendo construído houve um choque entre dois transatlânticos de
luxo — o “Republic” e o “Florida” — perto de Nantucket, Massachusetts, EUA. A
colisão causou muito mais danos do que o longo “raspão” do Titanic no iceberg.
No entanto, o “Flórida” conseguiu navegar até o porto de Nova Iorque, salvando
todos os passageiros. Quanto ao “Republic”, ele flutuou durante 38 horas, o que
permitiu o transbordo de todos os 750 passageiros. Ninguém morreu. Já com o
Titanic, repito, a nave afundou em duas horas e quarenta minutos. Só se
salvaram aqueles quinhentos e poucos que conseguiram lugar nos botes.
Insuficientes, porque o “Titanic” seria “inafundável”, não havendo necessidade
de muitos barcos salva-vidas. Dizia-se que “nem Deus conseguirá afundar o
Titanic”. Crentes um tanto caluniadores do divino chegaram a dizer, após o
naufrágio, que este ocorreu porque Deus quis punir o orgulho humano. Uma grande
bobagem porque, se assim fosse, o Criador seria terrivelmente mesquinho, um
modelo a não ser imitado pelo seus adoradores.
O que tem a ver o Capitalismo com o
naufrágio rápido do Titanic? É que uma investigação sigilosa, após o acidente,
comprovou que os construtores do navio — no estaleiro da Harland and Wolff, de
Belfast, Irlanda —, foram pressionados pelos proprietários a utilizar, no
casco, placas de aço, mais finas do que constava no projeto de construção. Além
disso, foram usados menos rebites para fixação das placas. E por que fizeram
essa alteração? Por causa da pressa em lançar ao mar um transatlântico já
famoso antes de “nascer”. Com a diminuição da espessura do casco o navio ficava
mais leve em 2.500 toneladas, podendo deslocar-se mais velozmente do que os
navios concorrentes no transporte de passageiros no Canal da Mancha. Em suma,
por razões de lucro brincou-se com o perigo, resultando na morte de 1.522
pessoas.
O autor procura convencer o leitor de
que se o Titanic tivesse flutuado por mais tempo — com um rasgão menor no casco
— a quantidade de mortos teria sido bem inferior, ou mesmo nenhuma. Para
escrever o livro o autor entrevistou um arquivista aposentado da firma
construtora tendo ele localizado a planta original do navio, com especificação
da espessura e número de rebites. Essa desconformidade entre a planta original
e a obra pronta, não sei se foi tão decisiva quanto parece ao autor do livro,
mas como não sou engenheiro naval não tenho condições técnicas para opinar. O
autor deve saber muito mais do que eu. O casco ficou mais fino em um quarto de
polegada. Uma coisa é certa: se na planta as placas deveriam possuir
determinada espessura, assim elas deveriam ter, realmente, mesmo que o navio
perdesse um pouco da sua velocidade. E velocidade, no caso, significava mais
dinheiro, promoção, atraindo a preferência do público que usava navios.
Essa diferença de espessura deve ter
sido significativa porque após o afundamento do Titanic a empresa dona do navio
— J. P. Morgan era um dos proprietários — decidiu reforçar o casco de um outro transatlântico
ainda em construção, o “Britannic”. Este último acabou sendo construído
conforme especificado na planta. O casco ficou mais resistente do que o do
Titanic. Toda a culpa da tragédia foi manobrada para recair somente sobre o
capitão do navio, que também se afogou. Mortos não se defendem. Se J. P. Morgan
e demais sócios tivessem que indenizar as famílias dos 1.522 mortos, iriam
certamente à falência.
O livro, segunda a detalhada resenha,
explica que para medir exatamente a espessura do casco foi contratada uma
equipe de mergulhadores que recortou amostras das chapas, constatando-se o
descumprimento do que determinavam os engenheiros navais para maior segurança
da nave.
Uma consideração, talvez não existente
no livro, mas que penso ser cabível, é a seguinte: com um peso maior do navio —
conseqüência da maior espessura do casco —, é provável que o Titanic não
passasse apenas “se esfregando” no iceberg. A colisão seria frontal. Os danos
da autêntica “trombada” seria mais visíveis na proa, porém é altamente provável
que o navio não afundaria. Isso porque o navio, na parte submersa, dispunha de
várias câmaras — ou que outro nome tenham — isoladas umas das outras. Uma,
duas, três, talvez quatro câmaras, poderiam ser inundadas mas o navio não
afundaria. Essa hipótese fora calculada. Daí a afirmação orgulhosa de que o
Titanic não poderia jamais afundar. Os engenheiros pensavam apenas na colisão
frontal, não em um extenso rasgo lateral, como ocorreu. Rasgo que seria menor
se o casco fosse mais reforçado, como exigia a planta original. Sua capacidade
de assimilação de água seria enorme. Ou, se afundasse, isso levaria muitas
horas, propiciando o socorro, a tempo, de outros navios.
O autor do livro, em referência,
provavelmente não correlaciona o capitalismo com o naufrágio do famoso
transatlântico. Se, porém, as conclusões do autor estão certas — e tudo indica
que estão — a tragédia marítima serve como lição para os tempos atuais, de
abalo financeiro causado por falta de mecanismos capazes de manter rédeas
curtas e sensatas nos cavalos selvagens que, freios nos dentes, desembestaram
na concessão de financiamentos hipotecários, querendo enriquecer rapidamente
com seus bônus fáceis. Sem pensar nas conseqüências.
Espera-se que, logo após a medidas
urgentes para evitar o caos atual, examine-se com minúcia o grau de culpa
daqueles executivos que, com seus bônus, engordaram suas contas-correntes e
depois deram o fora., confiando que os governos fatalmente se veriam obrigados
a socorrer bancos e correntistas.
Bêbados no volante já são punidos.
Falta agora examinar a dosagem de um outro tipo de “álcool” que circulava nas
veias de alguns financistas embriagados com a sensação de impunidade. Esse tipo
de álcool não se evaporou nem saiu com a urina. Pode ser examinado com
investigações contábeis. Culpados, ou inocentes, é preciso que se examine, a
fundo, a origem da tragédia, com o retorno do dinheiro relacionado com a
irresponsabilidade.
Finalizando, quero deixar claro que o
presente texto não repudia o sistema de mercado, sempre necessário. Um Titanic,
e seus assemelhados, não naufragaram nos países estritamente socialistas
simplesmente porque nem mesmo havia recursos e técnicas para construí-los. O
alerta, aqui, é de que o bem estar humano só avançará, sem periódicos traumas
arrasadores, se os dois regimes se derem as mãos, mesclando ambição e liberdade
com eficazes freios na boca dos fogosos CEOs das finanças. Ia dizer “cavalos
loucos”, mas de loucos eles não têm nada. O que lhes sobra é esperteza.
Francisco Pinheiro Rodrigues (20-11-08)
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