quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Relação entre o capitalismo e o naufrágio do "Titanic"

Não, não vou dizer aqui que o capitalismo é o Capeta, fonte de todo o mal, e por causa dele todos os países sofrerão na carne, digo, no bolso, “naufragando” nas dificuldades concebidas no útero das hipotecas americanas. Neste artigo, o “Titanic” não metáfora, é o próprio, o  navio, aquele do filme, o transatlântico de luxo que afundou em 1912, levando para fundo do mar 1.522 pessoas. “Onde, então, a correlação?” — perguntará leitor, impaciente com rodeios.

A analogia entre esse naufrágio e o capitalismo está na comprovação de que toda forma de energia — elétrica, térmica, atômica ou humana (ambiciosa, voraz mas incentivadora da produção) — precisa de algum controle. E este é mais eficaz se externo — estatal ou seu equivalente — do que interno, exercido pelos próprios interessados capitalistas, que optam, claro, por uma “meiga” auto-regulação. O dogma de que “o mercado se auto-regula” já demonstrou sua fragilidade, porque o egoísmo é inerente a todo ser humano, com exceção dos santos — uma espécie de ornitorrinco moral, destinada à extinção. De fato, o mercado tem um inegável poder de se auto-regular, mas apresenta brechas, pontos fracos, como ocorreu no naufrágio do Titanic, que matou tantos porque, à época, confiava-se um tanto na “auto-regulação” dos ambiciosos proprietários do navio. No início do século a regulamentação das construções navais estava algo atrasada, em comparação com o grande impulso na utilização dos grandes transatlânticos. A intensa movimentação de pessoas entre a América e a Europa era obviamente marítima, não aérea, como hoje.

A revista “Newsweek”, de 20-10-08 traz, na pág. 56, um artigo, ou resenha, do livro “Titanic’s Last Secrets” (Últimos Segredos do Titanic”) escrito por Brad Matsen. A resenha, inteligente e detalhada, foi redigida por Jeneen Interlandi. No livro, o autor — aparentemente com argumentos irrespondíveis — sustenta a tese de que se o navio tivesse sido construído segundo a especificação da sua planta não teria afundado tão rapidamente, como ocorreu. Haveria tempo dos passageiros e tripulantes — todos eles — serem transferidos para outros navios que, distantes, tentavam se aproximar antes que o Titanic afundasse de vez. Mas não chegaram a tempo. Entre o momento da colisão — na verdade um extenso “raspão” cortante, lateral, no iceberg — e o naufrágio passaram-se exíguas duas horas e quarenta minutos. No fator tempo, não propriamente na colisão, reside a tragédia do número imenso de mortos.

O autor do livro menciona que enquanto o Titanic estava sendo construído houve um choque entre dois transatlânticos de luxo — o “Republic” e o “Florida” — perto de Nantucket, Massachusetts, EUA. A colisão causou muito mais danos do que o longo “raspão” do Titanic no iceberg. No entanto, o “Flórida” conseguiu navegar até o porto de Nova Iorque, salvando todos os passageiros. Quanto ao “Republic”, ele flutuou durante 38 horas, o que permitiu o transbordo de todos os 750 passageiros. Ninguém morreu. Já com o Titanic, repito, a nave afundou em duas horas e quarenta minutos. Só se salvaram aqueles quinhentos e poucos que conseguiram lugar nos botes. Insuficientes, porque o “Titanic” seria “inafundável”, não havendo necessidade de muitos barcos salva-vidas. Dizia-se que “nem Deus conseguirá afundar o Titanic”. Crentes um tanto caluniadores do divino chegaram a dizer, após o naufrágio, que este ocorreu porque Deus quis punir o orgulho humano. Uma grande bobagem porque, se assim fosse, o Criador seria terrivelmente mesquinho, um modelo a não ser imitado pelo seus adoradores.

O que tem a ver o Capitalismo com o naufrágio rápido do Titanic? É que uma investigação sigilosa, após o acidente, comprovou que os construtores do navio — no estaleiro da Harland and Wolff, de Belfast, Irlanda —, foram pressionados pelos proprietários a utilizar, no casco, placas de aço, mais finas do que constava no projeto de construção. Além disso, foram usados menos rebites para fixação das placas. E por que fizeram essa alteração? Por causa da pressa em lançar ao mar um transatlântico já famoso antes de “nascer”. Com a diminuição da espessura do casco o navio ficava mais leve em 2.500 toneladas, podendo deslocar-se mais velozmente do que os navios concorrentes no transporte de passageiros no Canal da Mancha. Em suma, por razões de lucro brincou-se com o perigo, resultando na morte de 1.522 pessoas.

O autor procura convencer o leitor de que se o Titanic tivesse flutuado por mais tempo — com um rasgão menor no casco — a quantidade de mortos teria sido bem inferior,  ou mesmo nenhuma. Para escrever o livro o autor entrevistou um arquivista aposentado da firma construtora tendo ele localizado a planta original do navio, com especificação da espessura e número de rebites. Essa desconformidade entre a planta original e a obra pronta, não sei se foi tão decisiva quanto parece ao autor do livro, mas como não sou engenheiro naval não tenho condições técnicas para opinar. O autor deve saber muito mais do que eu. O casco ficou mais fino em um quarto de polegada. Uma coisa é certa: se na planta as placas deveriam possuir determinada espessura, assim elas deveriam ter, realmente, mesmo que o navio perdesse um pouco da sua velocidade. E velocidade, no caso, significava mais dinheiro, promoção, atraindo a preferência do público que usava navios.

Essa diferença de espessura deve ter sido significativa porque após o afundamento do Titanic a empresa dona do navio — J. P. Morgan era um dos proprietários — decidiu reforçar o casco de um outro transatlântico ainda em construção, o “Britannic”. Este último acabou sendo construído conforme especificado na planta. O casco ficou mais resistente do que o do Titanic. Toda a culpa da tragédia foi manobrada para recair somente sobre o capitão do navio, que também se afogou. Mortos não se defendem. Se J. P. Morgan e demais sócios tivessem que indenizar as famílias dos 1.522 mortos, iriam certamente à falência.

O livro, segunda a detalhada resenha, explica que para medir exatamente a espessura do casco foi contratada uma equipe de mergulhadores que recortou amostras das chapas, constatando-se o descumprimento do que determinavam os engenheiros navais para maior segurança da nave.

Uma consideração, talvez não existente no livro, mas que penso ser cabível, é a seguinte: com um peso maior do navio — conseqüência da maior espessura do casco —, é provável que o Titanic não passasse apenas “se esfregando” no iceberg. A colisão seria frontal. Os danos da autêntica “trombada” seria mais visíveis na proa, porém é altamente provável que o navio não afundaria. Isso porque o navio, na parte submersa, dispunha de várias câmaras — ou que outro nome tenham — isoladas umas das outras. Uma, duas, três, talvez quatro câmaras, poderiam ser inundadas mas o navio não afundaria. Essa hipótese fora calculada. Daí a afirmação orgulhosa de que o Titanic não poderia jamais afundar. Os engenheiros pensavam apenas na colisão frontal, não em um extenso rasgo lateral, como ocorreu. Rasgo que seria menor se o casco fosse mais reforçado, como exigia a planta original. Sua capacidade de assimilação de água seria enorme. Ou, se afundasse, isso levaria muitas horas, propiciando o socorro, a tempo, de outros navios.

O autor do livro, em referência, provavelmente não correlaciona o capitalismo com o naufrágio do famoso transatlântico. Se, porém, as conclusões do autor estão certas — e tudo indica que estão — a tragédia marítima serve como lição para os tempos atuais, de abalo financeiro causado por falta de mecanismos capazes de manter rédeas curtas e sensatas nos cavalos selvagens que, freios nos dentes, desembestaram na concessão de financiamentos hipotecários, querendo enriquecer rapidamente com seus bônus fáceis. Sem pensar nas conseqüências.

Espera-se que, logo após a medidas urgentes para evitar o caos atual, examine-se com minúcia o grau de culpa daqueles executivos que, com seus bônus, engordaram suas contas-correntes e depois deram o fora., confiando que os governos fatalmente se veriam obrigados a socorrer bancos e correntistas.

Bêbados no volante já são punidos. Falta agora examinar a dosagem de um outro tipo de “álcool” que circulava nas veias de alguns financistas embriagados com a sensação de impunidade. Esse tipo de álcool não se evaporou nem saiu com a urina. Pode ser examinado com investigações contábeis. Culpados, ou inocentes, é preciso que se examine, a fundo, a origem da tragédia, com o retorno do dinheiro relacionado com a irresponsabilidade.

Finalizando, quero deixar claro que o presente texto não repudia o sistema de mercado, sempre necessário. Um Titanic, e seus assemelhados, não naufragaram nos países estritamente socialistas simplesmente porque nem mesmo havia recursos e técnicas para construí-los. O alerta, aqui, é de que o bem estar humano só avançará, sem periódicos traumas arrasadores, se os dois regimes se derem as mãos, mesclando ambição e liberdade com eficazes freios na boca dos fogosos CEOs das finanças. Ia dizer “cavalos loucos”, mas de loucos eles não têm nada. O que lhes sobra é esperteza.

                                                         Francisco Pinheiro Rodrigues  (20-11-08)


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