sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Informações mendazes sobre Síria e Putin

É impressionante a quantidade de má-informação que circula na mídia, mundial e brasileira, a respeito do que ocorre na Síria. Tudo indica que nessa má informação está inserido um projeto bem elaborado e tenaz de um notório inimigo dessa nação árabe, Israel. Uma caricatura política hostil, engenhosa, contra a Síria — aliada do Irã — logo acompanhada pelos Estados Unidos e seus seguidores europeus, um tanto primários quando comparados com os estrategistas israelenses. Frise-se que nada acontece, no Oriente Médio, capaz de afetar Israel de algum modo, sem o conhecimento de seus órgãos de informação e segurança — usada esta palavra em seu significado mais abrangente.

Interesses americanos e europeus, desvinculados de um mínimo de preocupação ética e senso de justiça, deformam a realidade de um país e de seu governante, Bashar Assad, descrevendo-o como um “inimigo” de seu próprio povo. Pretendem, pela mera repetição diária — contando com ouvidos e olhos mal informados —, atingir esse objetivo. Até agora tiveram sucesso porque a Síria não dispõe nem de uma poderosa e rica mídia própria nem da imprensa internacional, ao contrário de seus opositores. A maior parte dos redatores de jornais e revistas não se atreve a contrariar seus patrões.


Apenas Putin, hoje, defende corajosamente o presidente sírio que estudou para ser um pacífico oftalmologista mas acabou como sucessor de seu pai, quando o irmão —, escolhido para substituir futuramente o pai —, faleceu em um acidente automobilístico. Por dever filial, abandonou a medicina e, de uns tempos, para cá passou a ser carimbado, por conveniência de seus inimigos, como “assassino” de seu próprio povo. Em situações políticas muito complexas, multifacetadas, sempre há algum “material” disponível para descrever políticos conforme o gosto do freguês.


“Assassino”, Assad, por quê? Porque defende, com evidente risco de vida — lembram-se do linchamento de Kadafi? — seu mandato de presidente sírio, eleito em dois referendos (2000 e 2007) e uma eleição (2010)? “Assassino”, porque defende a soberania de seu país? Porque nega-se a renunciar ao cargo, obedecendo a seus inimigos externos, acima mencionados? “Assassino”, porque um percentual desconhecido de cidadãos sírios, na vasta e vaga “Primavera Árabe” exigia genericamente mais democracia no sempre e convulsionado Oriente Médio?


Pergunta-se: antes da maciça hostilização internacional e cerco econômico contra Bashar Assad — pelos EUA e seu discreto conselheiro político, Israel —, os americanos se preocuparam, por acaso, em consultar a população síria para verificar se ela era majoritariamente favorável à saída de Assad? Se perguntassem, a resposta seria negativa, tudo indica.


A propósito, no Brasil — onde estão abrigados milhares de refugiados sírios —, dois ou três institutos de pesquisa de opinião bem que poderiam consultar esses refugiados sobre o grau de aprovação e rejeição de Assad antes que seus opositores “exigissem” sua saída em nome da democracia. Claro que agora, depois de instalado o inferno no país, ninguém mais quer permanecer na Síria. Não por medo de Assad, mas por medo do que virá depois dele.


Arrisco dizer que se todos os sírios que hoje fogem em debandada pelo mundo — fugindo do aterrorizante Estado Islâmico — fossem indagados se viviam relativamente felizes durante o governo de Bashar Assad — antes da “Primavera Árabe” —, a resposta seria favorável ao “tirano”. Isso porque o “tirano” vinha impulsionando o país no sentido da modernidade, do laicismo, separando a religião do estado, diminuindo progressivamente a pesada influência do lado mais negativo do islamismo. Essa religião tem o seu lado positivo, espiritualmente confortador, mas ultimamente tem mostrado uma faceta irracional, intolerante e impiedosa. É o chamado Estado Islâmico, ou ISIS, cuja simples menção gela a espinha das pessoas mais sensíveis.


Em passado não tão distante, reconheça-se, católicos e protestantes se matavam na Europa. Isso terminou em definitivo, há inúmeras décadas. Nos dias atuais a “vertente” Estado Islâmico supera, no item violência, todas as religiões mais violentas do passado, somadas. Nenhuma outra usa a decapitação lenta, com faca, por vezes manejada por crianças fanatizadas, como já foi noticiado e mostrado na televisão.


O terror difundido pelo ISIS é tão penetrante que endurecidos militares, de todos os países, têm medo de se envolverem em combates, no solo, contra esses terroristas . A explicação é simples: nas guerras normais, mais ou menos “civilizadas”, o soldado capturado dispõe da proteção de tratados internacionais, preservando sua vida e integridade física. Com o Estado Islâmico isso não ocorre. O prisioneiro de guerra pode ser degolado ou sumariamente abatido com um tiro na nuca, ou coisa ainda pior. Se for cercado, preferirá se matar antes que comece seu particular martírio. É até surpreendente que, segundo notícia recente, veteranos russos que combateram no Leste da Ucrânia tenham se prontificado a ajudar, no solo, o exército sírio na luta contra o Estado Islâmico, que não esconde seu intuito de aterrorizar.


Algum tolo imagina que, com a deposição e fuga de Assad — ele terá que fugir rápido, se não quiser ser morto no estilo mais cruel — a Síria ingressará em bonita e respeitosa democracia? Acreditam que haverá uma partilha cavalheiresca do poder entre os “moderados” opositores sírios, os “meigos” combatentes da Al-Qaeda, os “bondosos” integrantes do Estado Islâmico, os militares americanos, os assessores israelenses, os curdos, os combatentes do Hezzbolah, e tudo o mais imaginável naquela região conhecida por sua “tolerância”?  Para os Estados Unidos a Síria será um Iraque triplicado, que não conseguirá administrar. Por isso, vai se arrepender pela má orientação recebida. Um novo e confuso atoleiro americano na política externa é previsível se houver a rendição de Assad.


A oposição síria — todo país, ditadura ou democracia, têm oposição, “faz parte” — era, por acaso, majoritária antes da “Primavera Árabe”? Não se sabe. Pelo que deduzo, pelo razoável acompanhamento diário do que ocorre no mundo, não. Não houve qualquer sondagem, formal ou informal, sobre o grau de aprovação interna de Assad naquele momento. Seria tal aprovação de 70%, 80%? O governo Obama, por acaso, se preocupou com esse “detalhezinho” antes de “concluir e decidir” que Assad “tinha que sair”, violando a soberania de um país?


O proclamado desejo americano de instalar, à força, na Síria, uma democracia universal, no estilo norte-americano — extremamente dependente do financiamento de campanhas —, não pode prevalece sobre o direito de autodeterminação dos povos. As regiões do planeta diferem muito em termos de história, tradição, religião, hábitos políticos, utilização da violência, etc. E não se alegue que não seria possível fazer essa prévia sondagem na Síria, via plebiscito, porque Assad era um “ditador” e deformaria seu resultado. Os EUA não ofereceram qualquer oportunidade à Síria para comprovar suficiente apoio da sua população antes que a oposição, financiada, treinada e armada pela CIA, partisse para o ataque.


Sondagens modernas de opinião pública, a cargo de entidades especializadas, são impressionantemente precisas, com margens de erro de 3%. Não seria imprescindível um plebiscito conduzido pelo “suspeito” governo sírio. O governo Obama não se interessou por conhecer  — mesmo informalmente — a preferência da população. Talvez  porque havia o forte risco da pesquisa demonstrar que os sírios prefeririam viver como viviam até então, não trocando o certo pelo duvidoso. Se a pesquisa especializada dissesse que a oposição ao governo não chegava a 20% isso atrapalharia demais o plano de uso da força para tirar Assad do poder. Teriam que forjar outra justificativa.


Tudo indica que a meta oculta da derrubada de Assad é isolar o Irã, fiel aliado da Palestina árabe, que não consegue um status de país porque isso não interessa a Israel. O governo israelense, de direita radical, não se volta contra Assad por ser ele um ditador. Mesmo que a Síria vivesse uma democracia plena — mas apoiando o Irã — ela seria atacada. Sendo, porém, um regime “duro”, tanto melhor para os Estados Unidos e Israel, porque a opinião pública mundial sempre vê as ditaduras, ou meia-ditaduras, com antipatia.


Outras perguntas podem ainda ser feitas àqueles que exigem a renúncia ou derrubada de Bashar Assad. As perguntas são as seguintes: Afeganistão e Iraque ficaram melhores após a invasão liderada pelos Estados Unidos? Só um e louco e mentiroso diriam que sim. A Líbia ficou pacificada e próspera após a queda de Kadafi? Ficou muito pior, uma tremenda anarquia, o país africano árabe voltando à luta tribal. O Egito, após a queda de Mubarak por acaso tornou-se modelo de país democrático, respeitando o resultado da única eleição presidencial? Não. O presidente eleito, Morsi, foi deposto e condenado à morte pelos militares porque teria incentivado a população, em praça pública, a desobedecer às forças armadas.


Outra pergunta, mais teórica: os EUA, só pelo fato de serem a maior potência do planeta, tem o direito de dizer “quem fica ou sai” no governo de qualquer país? A ideia, nada modesta, do “excepcionalismo” norte-americano é uma “ordem” — como Obama parece pretender — ou apenas um bom exemplo a ser eventualmente imitado — porém voluntariamente — por outros países, considerando as vantagens de uma democracia verdadeira e não corrupta? A experiência, até agora, sobre essa matéria, é a de que o governo americano aprova ou desaprova governos com fragilidades democráticas segundo os interesses americanos do momento. Por exemplo, nunca tentou derrubar o chileno Pinochet. Pelo contrário.


Bashar Assad, feliz ou infelizmente, encontrou uma ajuda que lhe possibilita, talvez, uma precária sobrevivência: o “quase-tirano”, Vladimir Putin. Um chefe de estado também bastante injustiçado no conjunto de seus defeitos e qualidades. Tem seus defeitos — como todos os demais chefes de estado e de governo, sem exceção — mas não abandona povos indefesos vitimados pela injustiça. Lembre-se, sempre, que Putin está auxiliando abertamente a Síria porque seu governo está sendo atacado e pediu essa ajuda. Isso é legitimado pelo Direito Internacional.  Ao contrário dos EUA e sua “patota” sem opinião própria, que interfere na Síria, justamente para derrubá-lo, sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A oposição “moderada”, todos sabem, é treinada, armada e financiada pela CIA, conforme amplamente divulgado pela mídia independente.


Putin é muito criticado porque teria “invadido a Ucrânia” e se “apoderado” da Criméia. Na verdade, ele apenas atendeu à vontade explícita — em plebiscito e pedido formal —,  dos habitantes da Criméia, de origem russa, em sua maioria falando o russo. Não tapou os ouvidos nem fechou os olhos ao apelo de milhares de ucranianos. Ele fez, na Criméia, o que os EUA fariam no México, se milhares de mexicano de origem americana, loiros e falando inglês, morando junto à fronteira americana, pedissem ajuda e cidadania americana contra um governo mexicano hostil à sua origem americana. Acresce que um presidente ucraniano eleito, favorável à Rússia — Viktor Yanukovich —, foi arrancado do poder, pela força, não muito tempo antes dos habitantes da Criméia pedirem a Putin a cidadania russa. Cabe, aqui, de novo, a velha máxima da filosofia política: não é o povo o titular primeiro do poder?


Colunistas de jornais, quase sempre com sobrenome de origem hebraica, costumam, nos seus artigos, rotular Putin como “astuta raposa” em busca de cartaz e tentando ressuscitar a glória dos tempos de Stálin. Se ele é raposa, é uma raposa coerente, solidária com o esquecido e humilhado povo palestino, a origem remota do imbróglio em que se tornou o Oriente Médio. A  Al Qaeda é um subproduto da situação palestina.


Poucos dias atrás, li, na internet, uma inteligente analogia do que aconteceu com a “maré” de judeus que buscavam um lar na Palestina: imaginemos um hotel em chamas (seria a Europa antissemita dos anos 1930); um hóspede judeu, que está no terceiro andar do hotel, encontra-se na sacada, encurralado e apavorado, prevendo que logo morrerá queimado; a única alternativa é pular da varanda, porque não dá para esperar a chegada dos bombeiros; decide arriscar; salta, de olhos fechados, e, por mero acaso, cai em cima de um passante (seria um palestino), que ficou a com vários ossos quebrados mas salvou, até mesmo involuntariamente, a vida do judeu, amortecendo sua queda.


O judeu, pouco machucado, vai embora, feliz por estar vivo, e três meses depois recebe a visita do “palestino-amortecedor”, que chega de muletas e pede uma indenização porque quase não pode trabalhar. O judeu diz que não pode ajudá-lo porque não agiu com dolo, não sendo exigível que se deixasse torrar na varanda, só para não incomodar algum eventual transeunte. O palestino argumenta que o fogo no hotel não foi ateado por ele. O judeu se irrita, diz que também não foi ele que incendiou o hotel. A trágica discussão dura bem mais de meio século. E o palestino continua de muleta, arrastando-se  em uma vida miserável enquanto o paraquedista sem paraquedas mostra ao mundo sua orgulhosa riqueza.


Até quando? Quando o mundo — muito burro, sem imaginação — concluir: primeiro, que a Palestina é pequena demais para abrigar duas nações de formação tão diferenciada; segundo, que a África é imensa e poderia comportar mais de cinquenta Palestinas; terceiro, que Obama melhor faria se — como fez com recente proposta de “Parceria Transpacífico” —  lançasse a poderosa e salvadora ideia de utilizar uma pequena fração da África — sem prejuízo dos africanos — para ali viver, trabalhar e progredir uma parte da população palestina, ou da população judia, desafogando a semiárida

Palestina que, pelo andar da carruagem, poderá detonar terceira guerra mundial.

Obama, com tal inovadora, bela e estrondosa iniciativa, aqui sugerida — solucionando o impasse palestino —, recuperaria seu prestígio mundial, muito abalado nos últimos anos. Quem sabe o Putin, esse baixinho inteligente, sendo mais ousado que seu equivalente americano, passará a remoer esse tema. A solução concreta ainda demoraria, pela complexidade, mas os interessados pelo menos saberiam que havia um futuro estimulante e já ocupariam o tempo fazendo estudos e visitando a África. Quem agir primeiro difundindo essa ideia merecerá um Nobel da Paz. Até dois.


(11-10-2015)

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