Os Ministros favoráveis à admissão
dos Embargos Infringentes usaram e abusaram do argumento de que os juízes não
podem decidir em “obediência” à vontade popular. Uma advertência, por sinal, injusta,
só porque a população não leu — nem teria como — as 50.000 folhas em mais de
duzentos volumes de autos e apensos do chamado “mensalão”.
Pode-se imaginar como essa
leitura será problemática para os dois novos integrantes do STF que, votando a
favor desses Embargos, tumultuaram o que foi arduamente discutido e concluído após
meses de acalorado julgamento da atuação de cada réu. Agora terão que ler tudo,
minuciosamente — conseguirão? —, para fundamentar seus votos tentando reverter
a decisão que representou a derradeira esperança de um povo revoltado com a
impunidade dos “grandes”. A última palavra, no exame do mérito da causa não
serviu para nada?
“Última palavra”, no caso,
é mera retórica, porque o Regimento Interno do STF não estabeleceu limite algum
para a quantidade de Embargos de Declaração que poderão ser apresentados nas
futuras decisões. Para serem rejeitados eles precisam, antes, serem julgados, coletivamente,
com todas as suas laboriosas formalidades. Pelo que se assistiu até agora, cada
julgamento será um torneio de requintadas dissertações verbais que só poderão
beneficiar os réus, pelo simples fato da demora.
A sociedade — que não é
estúpida, como sugerem alguns — pôde
acompanhar razoavelmente os debates do julgamento de mérito do mensalão e está exausta
de ver tanta corrupção “engravatada” impune no país. Considera que a pendência
já foi suficientemente esclarecida. Pelo menos quanto ao milionário desvio de
dinheiro público e respectivas autorias, com menção específica, pelo Ministro
Relator, de folhas e folhas dos autos — dando a elas o seu respectivo número —,
comprovando os desvios.
O Min. Joaquim Barbosa, Relator,
leu, em voz alta, os trechos principais de depoimentos de réus, testemunhas e peritos.
Se estivesse apenas inventando — lendo uma coisa e dizendo outra —, os
advogados não deixariam passar essa farsa. Corrigiriam de imediato, até aos
gritos, a falsidade. E isso não ocorreu nem seria minimamente esperável de ocorrer nessa Corte. Assim, a
opinião pública formou uma convicção, contra os réus, que não é apenas fruto de
prevenção política contra o PT.
O máximo que alguns réus
políticos poderiam dizer, como justificativa, é que compraram votos de
parlamentares, sim, mas por puro idealismo, em favor do povo brasileiro, e que
os fins justificam os meios (leia-se: “pilantras
só votam bem mediante propina”). É possível, até, que algum réu do núcleo
político, não tenha pessoalmente embolsado dinheiro algum. Ocorre que o país, vivendo
há anos na democracia, não encontra justificativa para o uso do suborno na produção
legislativa. Se admitisse, para que
discussões em plenário, ou comissões? Seria mais prático contratar leiloeiros
para, às claras, com martelo em mão, vender a aprovação de tal ou qual lei,
conforme o lance mais alto.
O culto Min. Celso de
Mello, em seu voto desempatador sobre a admissibilidade dos Embargos
Infringentes, reconheceu, com palavras duras, como já fizera em votos
anteriores, terem ocorrido os fatos criminosos em discussão. Mas sua influente
opinião — como reputado jurista e decano — perdeu significado prático e moral,
ao decidir a favor da pertinência desse recurso, só porque permaneceu —
esquecido, mas vigente —, no Regimento Interno. Admitidos, como o foram, por
diferença de um voto, parte substancial da decisão de mérito do mensalão — com
provável contaminação, por necessidade de coerência, no julgamento de todos os
réus — tudo poderá voltar à estaca zero, graças a discutíveis interpretações da legislação
invocada em apoio da absurda preponderância de um Regimento Interno sobre a
legislação processual de todo o país. Falaremos sobre isso mais adiante.
Sem a prestigiada presença
do Min. Celso de Mello nos julgamentos futuros — ele acena com sua breve
aposentadoria voluntária — , o triunfo dos acusados do núcleo político, por ele
condenados com veemência, será bem mais facilitado. E se os réus quiserem
apresentar sucessivos embargos declaratórios, apenas para protelar, poderão
“esticar” o processo por quantos anos quiserem, impedindo o trânsito em julgado
de qualquer condenação residual.
Veremos, então, o triunfo
completo da temida e desmoralizante comida italiana, feita de queijo e massa,
agora cozida no forno da hipertrofiada Ciência Processual. Esta sacrifica o
direito material — a legislação penal, no caso — pela via oblíqua da maleável e
infindável interpretação das normas processuais e regimentais.
A propósito, recomendo a
leitura de artigo recente — esqueci o título, mas pode ser achado em sites de
busca — de um juiz paulista, Alfredo Attié. Esse magistrado demonstra o grande
prejuízo, para a justiça brasileira, da excessiva preponderância do Direito
Processual sobre o Direito Material, que acaba não sendo aplicado porque —
palavras minhas — os processualistas simplesmente não deixam, firmes na enganosa
“verdade” de que é necessário reexaminar infindavelmente toda decisão. Essa
postura mental só é admissível na Filosofia, na Arte, na Ciência e na pesquisa
histórica. Não na solução das disputas entre seres humanos, que quanto mais
eternas, pior, porque prolongam a incerteza, estimulam a impunidade e angustiam
milhares de outros demandantes que esperam anos e anos a solução de seus casos.
Para corrigir esse desastre — os Embargos
Infringentes nas decisões do plenário — que se delineia em futuro próximo,
seria preciso que o STF modificasse o Regimento Interno, mas os Ministros
favoráveis aos réus provavelmente não aceitarão, agora, qualquer modificação,
sob o tendencioso argumento de que haveria “casuísmo”.
Como assim, “casuísmo”? Se não há “direito adquirido” à imutabilidade
das leis de processo — desde que ressalvados os atos praticados antes da nova
lei —, por que, analogamente, não se podem alterar as regras regimentais? A
mera racionalidade obrigaria a aceitação de regras novas, mais eficientes, de
como processar os litígios. O que a lei
processual e a norma regimental não podem, como dito, é retroagir.
Não tem sentido obrigar o Judiciário a ficar de
braços cruzados assistindo a própria desmoralização apenas porque os
magistrados temem parecerem “casuístas”. É comuníssimo o surgimento de alterações
processuais sem que o legislador tenha que esperar o término de todos os
processos em andamento no país para, só então, fazer as alterações necessárias.
A se pensar assim, nunca haveria aperfeiçoamento na tramitação dos feitos.
A propósito do Regimento
Interno do STF, a sobrecarregada Corte foi, data
vênia, imprevidente por não ter, até hoje, disciplinado o uso dos Embargos
de Declaração, estabelecendo limites quantitativos à sua utilização. Bastaria
admitir apenas um embargo dessa natureza no STF. Constatado, depois,
eventualmente, ainda algum erro material de redação, ou digitação, o Tribunal
faria a correção sem maiores formalidades. Talvez a alteração do Reg. Interno não
tenha ocorrido porque, até passado recente, o Supremo inspirava um certo temor
reverencial, que hoje quase desapareceu.
Quanto ao cabimento, ou
não, dos Embargos de Divergência, também deveriam os dignos Ministros, com o
devido respeito, logo após a publicação da Lei n. 8.038/1990 — que instituiu
normas para julgamento nos tribunais superiores —, terem se reunido para
unificar um entendimento, no R. Interno, a respeito da permanência, ou não, desses
Embargos, não mais previstos como “recursos” na legislação em geral . Essa falta de uma clara tomada de posição do
STF possibilitou que cada Ministro, de passagem pelo Tribunal, tivesse uma
opinião própria, gerando diferentes decisões conforme a composição eventual da
corte.
O fato da Lei 8.038/90 dizer,
no art. 12, que nos “julgamentos” do STF seria aplicado o Regimento — na produção da prova, tempo de sustentação
oral, alegações, etc. — não quer dizer, necessariamente, que essa autonomia do
Supremo se estenderia ao “recurso” agora em discussão, abolido genericamente
com a Lei 8.038/90.
Mais provavelmente, a “intenção”
do legislador, na Lei 8.038 /90, art.12, usando a palavra “julgamento”, referia-se
à decisão da causa em si. Não à decisão de “algo mais”, posterior ao julgamento,
um recurso contra a decisão da causa em “última instância” (uma contradição de
termos, porque “última” teria que ser mesmo última). Uma coisa é o “julgamento”
de uma “causa”; outra, o “julgamento” de um “recurso” contra o julgamento
anterior, da causa. São decisões distintas.
O fato — muito valorizado pelo
Min. Celso de Mello —, de que Fernando Henrique Cardoso, quando presidente,
haver tentado, no Congresso, sem êxito, a abolição explícita, através de lei,
dos Embargos Infringentes, explica-se pelo simples fato dos parlamentares temerem
a possibilidade de, um dia, eventualmente — com as reviravoltas da política —, eles
mesmos, se tornarem réus. Caso isso acontecesse — e acontece com frequência —
os Embargos Infringentes ofereceriam novas oportunidades do parlamentar escapar
de condenações. Interesse pessoal. Legislação em causa própria. Preferiram
deixar a dúvida irresolvida. Esse
“background” deve ser levado em conta, com os demais fatores, na interpretação
das leis. Bismarck, salvo engano, já havia dito que quem gosta de leis e
salsichas nunca deve procurar saber como se fabricam essas duas coisas.
Aliás, não é raro que o
legislador, em temas polêmicos, temendo “meter a mão em cumbuca”, fuja de uma
decisão clara, deixando a dúvida para os magistrados resolverem. Esquecidos do
velho provérbio de que “cada cabeça, uma sentença”. Inúmeras dúvidas permanecem,
no direito brasileiro, porque a lei acabou redigida de um modo que agradasse a
gregos e troianos. Uma bela forma de dizer e não dizer ao mesmo tempo. Solução
que nada soluciona.
Quanto ao argumento, de
alguns ministros, favoráveis aos réus, de que se o Regimento permitiu os
Embargos de Declaração — já admitidos e julgados no mensalão —, não teria
sentido suprimir os Embargos de Divergência, porque — dizem eles — isso
representaria uma contradição do Tribunal, dando como cabível um tipo de
recurso e incabível o outro.
Esse argumento, data venia, é um sofisma, talvez
inconsciente. Os Embargos de Declaração estão implícitos na nossa sistemática
recursal, conforme o Código de Processo Civil, aplicáveis por analogia em toda
decisão judicial. Visam evitar contradições e erros evidentes de digitação ou de
redação em sentenças ou acórdãos. Mesmo que não estivessem previstos no
Regimento Interno, seriam conhecidos, caso o próprio Tribunal não fizesse a
retificação reclamada pela parte, por meio de simples petição.
Não existissem os Embargos
de declaração, um acusado absolvido em um processo contra vários réus, por
exemplo, não poderia pedir a retirada de seu nome da lista dos condenados
porque um funcionário digitador incluiu seu nome na lista errada. Ou figurar,
no acórdão, por exemplo, que ele foi condenado pelo artigo tal, com pena “x”,
quando o foi por outro artigo, com pena menor. A correção de tais erros
materiais independem de menção legislativa ou regimental. A menção dos Embargos
de Declaração, no Regimento, não impediria que o Supremo considerasse como
revogados os Embargos Infringentes, suprimidos pela Lei 8.038/90, embora
mantidos os Embargos de Declaração.
Veja-se a fragilidade da
justiça humana. Se o Min. Dias Toffoli, no julgamento do mensalão, se desse como
impedido, como deveria — por ter sido advogado do mais importante dos réus
políticos —, e não houvesse a insensata aposentadoria compulsória de dois
ministros aos 70 anos, seguramente já estaria encerrado um processo —
moralmente exemplar — que seguiu os trâmites legais, com amplo direito de
defesa, mas que, doravante, seguirá sob uma nuvem de desalento e provável estímulo
à criminalidade.
Esse estímulo não ocorrerá
apenas com os criminosos de colarinho branco, mas com todos os tipos de
colarinho. Ou sem colarinho algum, por falta de camisa. Na cabeça de
assaltantes, traficantes, sequestradores e tipos equivalentes brotará a
conclusão “igualitária”: — “Se os “bacanas” podem ‘sacar’ milhões, sem perigo
de tiro, pancada ou cadeia de verdade, por que nós, criados em total
desvantagem, não temos direito igual? Deveríamos ter, porque pelo menos
assumimos riscos. Chumbo é o que não falta contra nós quando a polícia consegue
chegar a tempo. Para nossa sorte, isso acontece raramente, porque, agimos rápido,
ao contrário das instituições legais”.
Segundo informação da mídia
a respeito do “Foro Privilegiado”, a AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros realizou um levantamento para
verificar o que aconteceu com as ações de foro privilegiado abertas a partir de
1988. A pesquisa se estendeu até 2007. Dos
130 processos abertos apenas 6 foram concluídos. Ninguém foi condenado. Todos
terminaram em absolvição e 13 prescreveram antes do julgamento. Assim, para
evitar tanta inútil perda de tempo dos Ministros e funcionários, seria mais
prático e realista — embora grotesco — conceder, de ofício, “habeas corpus” —, logo
no início do julgamento dessas causas, com arquivamento de tudo. O STF
simplesmente, por mais que queira, não tem condições físicas de lidar com tal massa
de processos privilegiados, sempre volumosos porque quanto mais folhas para
ler, maior a demora obtida, manobra natural de todo advogado que quer proteger
seu cliente.
Convém explicar aqui — embora
em termos “populares” — que existem dois tipos básicos de juízes: os aferrados
apenas à letra estrita da lei — auto denominados de “técnicos” —, e aqueles
que, embora técnicos na grande maioria dos casos, são mais sensíveis à ideia
mais ampla de justiça, dotados, talvez, de mais “imaginação jurídica”.
Quando a letra da lei, se aplicada
mecanicamente, leva a uma injustiça concreta, o juiz que não consegue separar justiça
e moral procura, no fundo da mente, alguma “saída” legal que permita, sem
afronta direta ao Direito — este é mais abrangente e valioso que a lei isolada
— uma solução que satisfaça aquele sentimento normal, nato, de todo ser moral.
Com isso, o juiz idealista
procura como que retificar um “escorregão” do legislador (quando o engano deste
foi de boa-fé), “presumindo” que se o parlamentar tivesse previsto a peculiar
situação dos autos, teria redigido a norma de outro modo. Quando, porém, o juiz
percebe, nitidamente, que a lei “não tem intenções confessáveis” — fato raro
mas possível —, deve, via “construção jurisprudencial”,
procurar no vasto arsenal legislativo, na doutrina, na jurisprudência e na
moral, neutralizar o ponto “venenoso” da norma legal. Ou mesmo a lei inteira,
se percebida como um pote de veneno não perceptível à primeira vista.
Legislar é muito mais
difícil que julgar, porque implica em planejar detalhadamente o futuro, sempre
imprevisível. Algo assim como as guerras, em que nosso inimigo age e reage sem nos
consultar. Daí a necessidade de um contínuo trabalho harmônico, orientado pela
moral, entre legislador e julgador. Já passou a época de se presumir — sem
maior exame — que toda norma legal é fruto de redatores santos e invulgarmente
inteligentes. Nem sempre isso acontece. E uma coisa é interpretar uma lei, ou
um conjunto de leis, em abstrato. Outra, dar a melhor solução para o caso.
É preciso um certo
virtuosismo interpretativo e redacional para o juiz convencer os
jurisdicionados de que se eventualmente parece que “forçou um pouco” a intepretação
da norma, fez isso apenas visando uma justiça superior, a melhor ou única
possível no caso em exame, agindo como um artista bem intencionado. Curiosamente,
Carlos Maximiliano, Ministro do STF (de 1936 a 1941), na introdução de sua
extraordinária obra, “Hermenêutica e Aplicação do Direito” sugere a existência
de uma certa analogia entre a arte e a interpretação das leis: “A
interpretação, como as artes em geral, possui a sua técnica, os meios para
chegar aos fins colimados”.
Confesso que quando juiz, sempre
agi assim: primeiro examinava o conflito sob o ângulo estritamente moral. Quem,
Autor ou Réu, estava “certo”, ou “mais certo!?Assim, empiricamente, decidiam os
sábios juízes do tempo de Salomão, quando não havia livros nem internet para os
auxiliar. A “fonte” do direito, então, estava apenas dentro do cérebro. Constatando
que a razão humana estava com “A” e não com “B”, eu procurava, na legislação,
na jurisprudência, e na teoria, a solução favorável ao “A”. Somente quando não
havia mesmo possibilidade de invocar um apoio legal, ou doutrinário, ou
jurisprudencial, é que, resignado, eu agia como um autômato, dispondo segundo a
lei. Afinal, eu era um juiz, servo da lei, não um legislador ou inventor sem
qualquer limitação.
Se não estou enganado, o
Min. Marco Aurélio Mello, em entrevista, confessou que também costuma proceder
desse modo, pensando mais na justiça global da decisão do que na obediência
cega aos artigos tais e quais, nem sempre redigidos com correta previsão das
situações de fato a serem regradas. Construído um edifício, verificado seu
peso, busquemos as fundações adequadas para suportá-lo; não o contrário” — comparação
minha.
Discutível, também, a
quase obsessão dos Ministros, no julgamento do mensalão, na busca de um
precedente nesse ou naquele sentido. O passado não deve escravizar o presente.
Muito menos o futuro. Os tempos e as necessidades mudam. O que interessa é que
a mudança seja para melhor, segundo critério atual. O ministro tal, de passagem
pelo STF, era inteligentíssimo? Era, sem dúvida, mas se fosse agora
ressuscitado, ou convocado para decidir um caso presente, decidiria igual? Nem
sempre.
Antes de prosseguir no
caso do “mensalão”, menciono um exemplo, da vida real, de nítido conflito —
entre legislação e moral — que me foi contado por um brilhante e saudoso
desembargador de São Paulo, famoso por sua competência e espírito independente.
Ele foi relator de uma apelação em que teria que optar entre a aplicação
mecânica da lei — com resultado imensamente injusto — e a verdadeira justiça.
O caso foi assim: uma moça,
poucas décadas atrás, cometeu a imprudência de anunciar, em jornal, que queria
conhecer “alguém” para um relacionamento sério e com fins possivelmente
matrimoniais. Disse, no anúncio, que tinha situação econômica estável e deu o
seu endereço, para correspondência. Um cidadão a procurou e depois de alguns
meses de namoro contraíram matrimônio pelo regime de comunhão de bens. Realizado
o casamento civil, no cartório, a noiva esperou, na igreja, a chegada do noivo.
Espera inútil.
O trauma sentido pela moça
foi tão atordoante que nem quis mais tocar no assunto “casamento”. Estava,
porém, tecnicamente casada. Muitos anos se passaram e quando ela estava em boa
situação patrimonial — não sei de outros detalhes, se recebeu ou não herança — foi
citada em uma ação direta de divórcio, movida pelo “noivo fujão”. A nova lei
permitia o divórcio bastando a não convivência por determinado tempo. Pelo que
eu depreendi do relato do desembargador, o Autor pretendia metade dos bens da
noiva frustrada, apoiado no “dura lex,
sed lex”.
O desembargador não se
conformava com o “caradurismo” do “marido” que nem chegara a consumar
fisicamente a lua de mel. Procurou uma saída no Código Civil — não me lembro
dos detalhes — e julgou a ação improcedente. Terminado o julgamento, quando o
desembargador caminhava pelo corredor do tribunal, o advogado do marido o
esperava. Pedindo licença para trocar algumas palavras, observou que “com a
devida vênia, o senhor decidiu contra a lei”. Ao que o desembargador retrucou: —“Olhe
em volta, meu senhor, e verificará que estamos
em um Tribunal de Justiça, não de Leis”.
Não sei como corajoso Min.
Celso de Mello decidiria esse caso, , porque pela lei estrita, sendo o
casamento regido pela comunhão de bens, o marido teria direito a metade dos
bens em nome da esposa que nunca chegou a ser realmente esposa. Foi um caso em
que somente a moral poderia dar a solução correta.
A decisão do mensalão, com
o voto vencedor do Min. Celso de Mello, admitindo os Embargos Infringentes na Ação
Penal 470, enquadra-se plenamente nas antigas máximas jurídicas do “Summum
jus, summa injuria” e “Fiat justitia,
pereat mundus”(faça-se a justiça, ainda que o mundo pereça). O voto de
desempate do inteligentíssimo Ministro —
não é elogio falso, ele tem realmente uma memória invulgar — só entristeceu a
vasta maioria do povo brasileiro, que julga com o bom senso e, por isso, não
julga mal.
O Pacto de S. José da
Costa Rica, muito invocado pelo Min. Celso de Mello, assegura, como garantia
judicial, no art. 8º, item 2, letra “h”, “...o direito de recorrer da sentença
para o juiz ou tribunal superior”.
Pergunta-se: e quando não
houver um “tribunal superior”? Se o “tribunal superior” é o mesmo tribunal já
não é mais “superior” porque ninguém é superior a si mesmo. Trata-se, no fundo,
de apenas um “pedido de reconsideração”. No caso, com possibilidade de exame ou
reexame de 234 volumes de autos, com mais de 50.000 folhas.
E há mais, a mostrar,
principalmente no caso do mensalão, que está na hora de cancelar os E.
Infringentes no R. Interno
Imaginemos que quando
apresentado esse recurso a composição do tribunal seja a mesma que julgou o
caso. Qual a razão para pedir nova decisão? Esperança de que os Ministros mudem
de ideia? Suponhamos que um Ministro que absolveu o réu conclua depois,
decidindo os Embargos, que antes errou em tal ou qual crime e que agora
gostaria de condenar. Ele estaria livre para isso? Não, segunda a legislação brasileira, porque
esta proíbe que o réu recorrente tenha sua pena agravada quando a acusação não
recorre. Isso já representa uma tremenda ajuda para os acusados. Não sei se
existe país no mundo com tal arsenal de proteção processual contra réus capazes
de chegar ao Supremo, pela via recursal ou originariamente.
Como o presente artigo já
está excessivamente longo, procurarei abreviar minhas considerações dizendo que
o foro privilegiado já representa uma imensa vantagem para qualquer réu.
Dispensa-o da “Via Crucis” — seguida
pelos réus “normais” de toda acusação criminal—, obrigados a recorrer um longo
percurso para tentar provar sua eventual inocência. O réu “privilegiado” dispõe
da imensa vantagem de ser julgado — “VIP” — diretamente pela nata da
magistratura nacional. É como se um paciente, acusado de crimes, dissesse,
chegando a um hospital: — “Só aceito ser operado pelos melhores cirurgiões
deste país”.
Além dos maiores juízes do
país, dispõem os réus “privilegiados” também dos melhores criminalistas
disponíveis, que fazem o que é humanamente possível fazer em favor do cliente,
favorecidos por uma legislação, a brasileira, dada como extremamente benevolente.
Não são uns “coitadinhos” a serem especialmente protegidos em seus “direitos
humanos” — o grande objetivo do Pacto de São José da Costa Rica.
Se o leitor se der ao
trabalho de ler o referido Pacto verá que ele foi concebido, primordialmente,
para defender os menos favorecidos, os desprotegidos de tudo. Não a “nata” do
colarinho branco e políticos de grande poder, capazes de contratar, como disse,
os melhores advogados do país para julgamento no também melhor e mais alto
Tribunal da nação, e ainda com regras especiais. Tão especiais que, como foi
mostrado acima — no levantamento da AMB — em 18 anos de aplicação do foro
privilegiado, no STF, não houve nenhuma condenação nos 130 processos
instaurados.
Trabalho escravo, tráfico
de mulheres, prisão arbitrária, sem julgamento de pobres diabos, ou jornalistas
e políticos perseguidos por ditadores. Essa a inspiração básica dessa
“Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, realizada em Costa Rica, em
novembro de 1969, que recebeu o nome de ‘Pacto”.
Por isso — a preocupação
com os deserdados da sorte — o Pacto de São José da C. Rica, no art. 8, inciso
2, letra ‘h’ previu o (verbis) “ direito
de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior”. E parou aí a redação.
Nem pensou — o redator dessa letra e inciso —, na mera possibilidade de tais
julgamentos serem julgados diretamente, pela privilegiada instância máxima. Do
contrário teria escrito alguma coisa depois do “...para juiz ou tribunal
superior”. Teria escrito algo semelhante a um “Caso a decisão seja proferida
pelo Tribunal mais alto do país, o acusado terá direito a um novo julgamento se
houver “x” juízes vencidos na decisão de condenação”, ou redação assemelhada.
Não é
imaginável que em uma Convenção tão importante um detalhe tão grave tenha sido
mero esquecimento do redator do “Pacto”. Certamente, os embargos infringentes
não foram mencionados porque não havia, à época, razão para isso. Bastaria,
para o acusado, o inegável privilégio de ser defendido e julgado pelos mais
presumivelmente qualificados profissionais do país, defendendo e julgando.
Na
verdade, a nosso ver, não houve “esquecimento redacional” algum. É que, em 1.969,
quando o texto final do Pacto foi apresentado, não havia a prática, ou “habito”
— cada vez mais ampliado, de lá para cá — do julgamento com foro privilegiado.
Dei uma espiada em algumas constituições de países americanos de língua
espanhola e constatei que os parlamentares, por volta de 1.969 não tinham foro
privilegiado. A “vantagem” — não é ônus, o privilégio dos acusados — já era
evidente em julgamentos dessa natureza. A vantagem começou apenas com a
proteção de presidentes da república e mais um ou dois. Hoje há uma vasta lista
de privilegiados, o que explica a nenhuma condenação até o caso do mensalão,
porque cada processo desse tipo gera “meia tonelada” (ironia) de autos de
processo.
Encerro
essa longa dissertação com um apelo para que o Min. Celso de Mello adie, até a
compulsória, sua aposentadoria que ele acena para este ano. Esse apelo vem,
presumivelmente, de milhões de brasileiros — não é necessário consultá-los
expressamente — que temem que nenhum condenado do mensalão termine preso ou
talvez, nem mesmo em semiaberto. V. Exa. informa estar precisando descansar ,
por motivo de saúde.
Só pode
ser real sua exaustão, mas sua aparência física, sua energia verbal e mental —
revelada no decisivo voto desempatador — permitem concluir que ainda dá para
aguardar a aposentadoria compulsória, que não demora.
Más línguas
— sempre as há, e já ouvi algumas — dirão que depois de V. Exa. “destruir”, com
o desempate, tudo o que foi construído com anos de um julgamento gigantesco e minucioso
— em que foi contundente na condenação dos réus —, sua aposentadoria, agora, representaria
uma “fuga das consequências”. Se, é seu direito, logo após a aposentadoria
voluntária, passar a dar pareceres — porque é um trabalhador nato e não
conseguirá ficar parado —, os decepcionados com seu voto, rancorosos, dirão que
a aposentadoria visou não só o descanso benéfico à saúde, mas também um
proveito econômico da própria notoriedade, sem ligar para a sensação geral de
decepção com a justiça brasileira, que voltará à estaca zero, da qual havia
saído com o resultado do mensalão. E acrescentam: “Quem o substituirá no
Supremo?”
(27-9-2013)
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