Há décadas estou afastado do Direito Penal. Quando magistrado em atividade, nunca pretendi ser promovido para Varas Criminais, ou Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Quando escrevo sobre crimes, na internet e revistas, faço-o de forma genérica, preocupado apenas com o aumento da criminalidade e uma difusa sensação de impunidade, sentimento bastante compartilhado pela coletividade. De modo geral, essa impunidade é conseqüência de um legislação bem intencionada, mas ingênua.
Se confesso essa minha falta de convivência com a aplicação diuturna do Direito Penal, porque me atrevo a sugerir — como de fato sugiro — que a lei permita a doação ao Estado, pelo presidiário, de um rim — e talvez, futuramente, de parte do fígado, ou medula óssea — em troca da redução de sua pena?
Faço isso porque soube, casualmente, hoje, pela internet, que o Deputado Federal Alessandro Molon (PT-RJ), Relator da Subcomissão Especial sobre Crimes e Penas, pretende apresentar seu relatório final até o dia 31 do corrente mês de março. O tempo é curto para um extenso estudo da matéria mas o prazo para o relatório final poderá, talvez, ser prorrogado, ouvindo-se os especialistas, tanto do Direito Penal quanto da Medicina.
Acredito que se a lei brasileira iniciar essa abertura — que considero virtuosa e não afrontosa dos direitos humanos — será seguida por outros países. Com tal inovação, todos serão beneficiados: doentes que temem morrer — e muitos morrem mesmo — antes de encontrarem um doador; presos que ficarão menos anos na cadeia porque salvaram uma vida, com isso aumentando sua auto-estima; potenciais vítimas de homicídios cometidos pelo crime organizado, que lucra torpemente com o tráfico de órgãos, principalmente de crianças e jovens; avanços técnico-cirúrgicos decorrentes da prática mais freqüente de transplantes intervivos.
Não conheço o teor das propostas de modificação legislativa, existentes na mencionada Subcomissão da Câmara dos Deputados, mas, certamente proposta igual, ou parecida, não chegou a ser apresentada. Se o fosse, jornais e TV teriam mencionado o assunto, considerando sua relevância .
Estou plenamente consciente de que o mero enunciado dessa idéia provocará reações quase automáticas. Instintivamente contra ou a favor, porque todo ser humano tem dentro de si, uma “lista pétrea”— consciente ou inconsciente —, de idéias consolidadas que o dispensa do trabalho de analisar qualquer idéia nova: — “Não li, nem ouvi direito, mas já adianto que sou contra! Vamos transformar os presídios em um açougue?!”. Ou o contrário: — “Nada mais oportuno! Se essa for a vontade do presidiário, por que não? Tenho um parente doente que provavelmente morrerá por falta de doadores! Está no fim da lista de espera do órgão”.
Diariamente, no Brasil, morrem pessoas por falta de doadores de órgãos. Já li que 15 pessoas morrem por dia. Essa carência, como disse acima, estimula o crime organizado, sempre alerta, esperando alguma oportunidade — o seqüestro e assassinato de “fornecedores” jovens. Sendo jovens, suas “peças” valem mais porque estariam com menor “quilometragem”.
Por que pessoas necessitadas não vendem um rim? Porque esse comércio é ilegal e se legalizado configuraria o abuso de um dos direitos humanos: o de desfrutar de sua integridade física. Abuso porque o vendedor seria sempre um ser humano pobre. Homens ricos jamais venderão seus órgãos. Correta, portanto, a nossa legislação quando proíbe o comércio de órgãos.
No entanto, caso prevaleça a proposta legislativa de voluntária entrega de um rim ao Estado —, obrigatoriamente ao Estado —, em troca de uma significativa diminuição da sua permanência na prisão, o recluso apenas exerceria o seu direito de optar pela liberdade, sem prejuízo de levar, depois da extração do órgão, uma vida normal. Pelo que sei, doadores vivem normalmente. Talvez não possam praticar esportes pesados, mas essa restrição será menos pesada, moralmente, que passar mais alguns anos na cadeia, sujeito a terríveis constrangimentos. A família do preso também sofre os efeitos da separação forçada do chefe da casa.
Desde que não haja coação contra o condenado — o Ministério Público seria sempre ouvido, devendo entrevistar o detento —, nem “comércio de órgãos”, não vejo onde estaria a violação de seus direitos humanos.
Violação de seu direito seria, pelo contrário, impedir que o condenado possa escolher o que melhor satisfaça seu particular interesse. Saindo mais cedo da prisão, isso fará bem a ele à sua família. Ressalte-se que pessoas que precisam de um transplante de rim também têm o direito humano de obterem um serviço de saúde que os salve da morte. Esse direito não está hoje acessível por falta de doadores em número suficiente. E contar com rins extraídos de pessoas mortas em acidentes de trânsito é sempre problemático, por razões relacionadas com a demora na extração, preservação cuidadosa do órgão em local frio, desespero da família do acidentado e a inevitável burocracia decorrente de todas essas situações.
Faria bem ao condenado, moralmente, essa doação, porque o preso sentir-se-ia valorizado por ter salvo uma vida humana, mesmo desconhecendo quem recebeu seu rim. O Estado, recebendo o rim, o encaminhará ao órgão competente para o transplante, obedecendo ao critério cronológico de atendimento. “Furar fila” já é proibido. Ricos e pobres são tratados igualmente, pelo que sei.
A cadeia, como todos sabem, degrada o homem. Só ainda existe porque não foi descoberto um método legal, eficaz, que intimide os cidadãos propensos a cometerem um crime. E que satisfaça, também, o natural desejo da vítima, ou sua família, de ser, de alguma forma, compensada ou “vingada” em sua dor. Ainda não existe uma espécie de “vacina” que provoque, em todos os seres humanos, uma instintiva repulsa, moral e física, a atos de desonestidade, e egoísmo censurável.
O mal do crime, já praticado, dificilmente pode ser reparado. O passado é imutável. Nem Deus pode alterá-lo. No caso do homicídio, nada trará o assassinado de volta à vida. Se o recluso tiver sido condenado por homicídio, em um momento de ódio, poderá pensar, doando o órgão: — “Se tirei uma vida, posso conceder outra, com a doação de parte de meu corpo. E com o privilégio de continuar vivendo. Privilégio, porque o homem que matei continuará morto”.
Algum parente de vítima de homicídio poderá discordar da proposta em exame, alegando: —“Não é justo abreviar o tempo de prisão e consequente sofrimento moral, de um homem que matou outro homem. Voto contra! Que ele apodreça na prisão!” Contra esse argumento pode-se contra-argumentar: —“Não ocorrendo a doação, esse parente de vítima esquece-se de que à morte de seu parente terá adicionado outra morte: a de um estranho (que morrerá porque precisa urgentemente desse órgão e não há outros disponíveis). Duas mortes, em lugar de apenas uma.
Quanto ao percentual de diminuição da pena, no caso de tais doações de rim, cabe aos especialistas opinar; não eu, com pouca vivência nessa interessante área do Direito.
Prevendo objeções, apresento o argumento de que se um preso comprovar que precisa de um rim para continuar vivo, e um seu parente se dispõe a doar o seu, penso que se a administração penitenciária recusasse o transplante, isso causaria imensa polêmica. A recusa da administração implicaria em sentença de morte contra um preso doente. Aí será o caso de se perguntar: se o preso pode receber um rim, por que, em contra-partida, não pode fornecê-lo, salvando a vida de um estranho? Isso não representaria um privilégio moral em favor de um criminoso?
Um detalhe que a eventual lei precisaria examinar e decidir é se a diminuição da pena também seria concedida quando o preso doa o rim a um parente dele. Penso que, nesse caso, não haveria diminuição de pena. Ele que dê seu rim ao parente, mas sem com isso diminuir seu tempo de reclusão, porque seu gesto não seria humanitário, visaria apenas o benefício de sua própria família. Somente o sentido humanitário da inovação legislativa é que a justificaria.
Quanto a doação de fígado, pulmão e medula óssea — não confundir com medula espinal — esse assunto poderia ser examinado em outro momento legislativo, porque o lado médico é mais complexo. Além disso, a ampla e voluntária permissão de doação de órgãos, para diminuição da pena, reforçaria o argumento habilidoso de que os presídios se tornariam um “açougue de carne humana”. Traficantes de órgãos vão, se possível, criar um lobby disfarçado para evitar que a presente sugestão se transforme em lei. Ela seria péssima para os “business”.
Espero ter, pelo menos, levantado o problema, que será melhor examinado pelos especialistas da área. E o Dep. Alessandro Molon certamente terá condições de decidir se a proposta deve ser incluída, já, nos trabalhos da Subcomissão, ou relegada para lei avulsa. De qualquer forma, haverá um benefício geral caso a proposta em exame seja transformada em direito positivo.
(14-3-2012)
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