quinta-feira, 14 de outubro de 2021

“Casaca de Urubu”

 

Não sei onde os contistas, no geral, procuram inspiração para suas estórias. De minha parte, o jornal, lido pela manhã, me abastece com muito mais material do que posso aproveitar.

Isso porque a vida continuamente forja incidentes que nenhum escritor, por mais imaginativo que seja, teria a audácia de lançar no papel.

Não que falte aos ficcionistas suficiente imaginação. Usualmente têm-na até em excesso. Junte-se todo o delírio imaginativo de um asilo de loucos furiosos e a soma ficará muito aquém do imaginário de um único escrevinhador. O problema está na preocupação com a verossimilhança.

Precavido com a possibilidade de afrontar a inteligência do leitor, possivelmente mais inteligente do que o escritor, apenas não tendo paciência para cansar o traseiro escrevendo, por exemplo, um romance, o ficcionista não se arrisca a lançar no papel situações aberrantes, criadas pela sua imaginação.

Já a vida real não está nem aí. Desenrola-se com a mais altiva indiferença, nem um pouco preocupada se vão, ou não, acreditar nos seus caprichosos movimentos. Bocejando, a vida simplesmente acontece.

De minha parte e outros, igualmente comodistas, o grande truque da chamada “inspiração” — artigo hoje quase dispensável, tal o acúmulo de estímulos que chegam de toda parte — está em agarrar o fato real, dramático ou pitoresco, relatado pelo obscuro repórter — que, por justiça, mereceria parte dos direitos autorais — e dar ao relato dele uma “ajeitada” embelezadora. Ou “banho de loja”, no linguajar dos vendedores de carros usados — outra categoria profissional com a qual toda cautela é pouca. Sem preocupação quanto à possível rejeição dos leitores mais críticos e sabidinhos. Afinal, se o fato básico realmente ocorreu, embora inacreditável, pode o autor permanecer tranquilo, não obstante a previsível chuva de impropérios e perdigotos, felizmente cuspidos em sua ausência.  Em resposta dirá apenas um “É inacreditável, claro, mas é a própria vida. Apenas carreguei nas cores”.

Um ficcionista pode, por exemplo, necessitando reduzir o elenco de personagens, descrever a cena em que uma cobra pica o pé de u’a moça. Convém que ela seja linda porque escritores e leitores jovens não gostam de gastar tinta e tempo com gente feia sofrendo os efeitos do veneno. A jovem morrerá com maior ou menor estilo, talvez nas exageradas “vascas da agonia” — que já foi uma imagem forte, muito requisitada, embora por demais produtoras de saliva. Ou até mesmo não morrer, apenas passando perto, se o autor subitamente se lembrar de que ainda pode precisar da personagem alguns capítulos mais à frente. “Depois eu mato ela”. Mas nenhum escritor teria a coragem de ir tão longe dizendo, por exemplo, no caso da cobra, que quem morreu, após a picada, foi a cobra, não a linda moça. Pois foi o que ocorreu, na vida real segundo um jornal —, quando uma serpente caiu na besteira de, na zona rural, morder o calcanhar de uma baiana vigorosa que saiu ilesa, aos pinotes, enquanto a cobra desencarnava. Talvez morta de susto ofídico e arrependimento; não pela maldade da picada, mas pela burrice na seleção do alvo.

É claro que notícias assim — “Cobra morre após picar o pé de uma mulher, que sobrevive” —, geralmente muito sumárias, merecendo ser lidas com alguma reserva. O repórter se interessa apenas pela síntese intrigante. Não esmiuça os fatos. No caso da cobra, pode ser que o pavor da mulher ao sentir-se picada tenha feito a mulher saltar e sapatear, numa espécie de dança guerreira. Sendo, talvez, muito pesada — o jornal não esclarecia — aquele bate-estaca humano, com mais de noventa quilos, mais a velocidade da descida do pinote —, desabando em cima da frágil espinha da tentadora de Eva, possivelmente explicasse melhor a “causa mortis” do ofídio. Mas não, o repórter apenas conta o produto final: foi só a cobra que morreu após a picada. Induzindo o leitor a pensar que o veneno da mulher era muito mais forte. Claro que isso acontece, às vezes, com algumas beldades perigosas, mas não se pode generalizar.

Outra fonte excelente de ficção, também emergente da vida real, está na memória dos velhos. E não se impressionem, os moços, com a maior lentidão das anosas mentes porque, como dizia o também idoso – por isso suspeito – Marquês de Maricá: “ A memória dos velhos é menos pronta porque seu arquivo é mais extenso”. Admitamos que uma parte da marcha lenta cerebral seja devida às condições das artérias, entupidas com excesso de pizzas, torresmos e feijoadas. Mas não se pode minimizar que, tendo o idoso visto muito, é natural que demore, mais que o jovem, a localizar aquela determinada ficha mental, entre tantas amontoadas na gaveta cerebral.

Nesses velhinhos aposentados, tão tranquilos — refiro-me aos mais abonados, ou amparados pelos filhos, porque os que dependem só do INSS contorcem-se na corda bamba — existem verdadeiros tesouros de recordações, com registros de fatos que nenhum escritor, mesmo beirando a loucura, seria capaz de conceber.

Para dar um pequeno exemplo, transcreverei aqui o que me foi contado por um velho cearense, com quase noventa anos mas perfeitamente lúcido.

Dizia-me ele que, quando menino, no Ceará, havia um cidadão que ganhava seu pão cobrando, presencialmente, velhas dívidas. Credores, cansados de cobrar, sem êxito, seus devedores, contratavam esse cidadão, um especialista, que ficava com um combinado percentual do que conseguia recuperar do devedor. Era, enfim, um “cobrador” e tinha um apelido, “Casaca de Urubu”, isso porque trajava, nas suas cobranças, uma espécie de fraque velho de cor preta, fosse qual fosse o calor nordestino.

 Não existindo, então, um sistema de protesto de títulos, o Casaca de Urubu quando parava na casa de alguém isto significava que esse alguém era um devedor que não pagava suas dívidas. Por isso, era temido, não por ser violento, mas porque ninguém quer ficar com fama de caloteiro. Sua casaca funcionava como uma espécie de farda, ou uniforme de cobrança, porque as pessoas das casas vizinhas, vendo o Casaca passando na rua, logo se interessavam, maldosamente, para ver se ele ia se deter em algum portão ali perto, porque a fofoca faz parte da natureza humana.

O velho cearense que me contou esse eficiente sistema prático de cobrança de dívidas não me descreveu —, porque não me ocorreu a lembrança de lhe perguntar — como era, fisicamente, o “Casaca de Urubu”. Se alto ou baixo, fisicamente forte ou fraco. Presumo que era um homem fisicamente forte, grande, porque a pessoa cobrada nem sempre era calma, pacífica, sabendo que a vizinhança a observava disfarçadamente. Alguns reagiam de forma agressiva.

O Casaca não chegava ameaçando nem gritando, mas era firme, de uma tenacidade doentia. Ele simplesmente chegava e cobrava a dívida. Se o devedor não estava, ou mandava alguém da casa dizer que não estava, o “Casaca de Urubu” simplesmente se encostava no portão ou muro, com expressão fechada, e aguardava a sua volta. Não se incomodava de ficar ali horas e horas, sob chuva ou calor. Se o devedor estava escondido dentro da casa, ficava “ilhado”, não se atrevendo a sair, nem mesmo para trabalhar. Se estava fora, não tinha coragem de voltar à própria moradia. Com tática tão eficiente, caso o devedor ainda tivesse algum dinheirinho ele priorizava o pagamento dessa dívida, só para se livrar da sorumbática craca humana.

O grande problema para os devedores, como já disse, é que toda a vizinhança sabia porque o “cobrador” estava plantado ali, qual uma sentinela do crédito. Ninguém queria ser seu amigo, porque amizade implica em alguma proximidade física. E uma simples visita de cortesia do nosso homem equivaleria, hoje, a uma citação judicial, com alto falante, num pedido de falência. O amigo visitado, tão logo a visita ia embora, teria que correr quase de casa em casa explicando aos vizinhos que se tratava de uma visita social.

Para agravar o vexame dos devedores, a garotada da vizinhança costumava seguir, de uma certa distância, expectante, o “cobrador”. Uma espécie de alegre procissão, ou chegada do circo na cidade, porque não era raro que o devedor, sentindo-se desmoralizado, se exasperasse, ameaçando partir para a ignorância. A cobrança tinha, realmente, um grande potencial de violência, numa época em que a necessidade humana de ver sangue — o alheio, claro —, tinha muita chance de ser satisfeita. Naquela época não havia cinema nem televisão, em que sexo e sangue, juntos ou separados, escorrem pela tela e pingam no tapete.

A garotada, claro, torcia para que o devedor não pagasse, porque assim aumentava a tensão e a possível violência. Já o cobrador, evidente, torcia em sentido contrário. Ele só ganhava na medida do que conseguia receber.

Até aqui tudo está normal, podendo o relato ser fruto da minha imaginação. Ocorre que — aqui começa a escalada do impensável, a originalidade da vida real:  quando o devedor, na primeira visita do Casaca, prometia pagar a dívida no dia xis — mas não cumpria a sua palavra —, o “cobrador” tinha um “chilique”, desmoronava, desfalecia, caindo realmente no chão, ali ficando desacordado. O velho cearense não soube me informar se nesses momentos o “Casaca” tinha convulsões, ou se babava – o que caracterizaria a epilepsia. O fato é que caía de verdade, sem escolher jeito menos doloroso de se estatelar. Às vezes desmoronava na vertical, como que implodido, dobrando os joelhos, sem se machucar . Outras vezes caia de chapa, para frente ou para trás, machucando o rosto ou a parte de traz da cabeça. De qualquer forma, seus magistrais desmaios atraiam ainda mais a atenção dos passantes e vizinhos, que se aglomeravam na porta do devedor, tentando erguer o cobrador.

O desmaiar, ou sair andando do “Casaca”, era um outro sinalizador da situação financeira da pessoa cobrada. A vizinhança inteira espreitava, de perto ou de longe: se o “Casaca” desmoronava é porque o devedor estava mesmo numa situação tão preta quanto a casaca do cobrador, inadimplência que representava uma utilidade geral para o comércio local. Equivalia ao atual Serviço de Proteção ao Crédito, ou cartório de protesto de títulos. Se não havia desmaio, a situação do devedor não era tão grave. Ele costumava desmaiar só no retorno para cobrança, sem conseguir receber.

Até aqui não há nada de especial neste relato. O desmaio seria, talvez, mero fingimento, “teatro” do Casaca? Algo diferente, grotesco, mas eficiente? Alguns “galos” na cabeça seriam apenas os ossos do ofício, ou, modernamente, “despesas do protesto do título”?

Ocorre, leitor — e é aí que entra a genialidade da vida real — que os desmaios não eram simulados. O velho cearense, homem sério, me garantiu isso. O “cobrador” sofria realmente os ataques, quando não conseguia receber o que lhe fora prometido. Ao que tudo indica, a contrariedade, a decepção, após tanta espera, fazendo planos sobre como gastaria a comissão —, causava um tal choque no seu peculiar sistema nervoso, que seu organismo reagia desabando. Não constava que ele fosse epilético. Se o fosse, os ataques não escolheriam hora nem local, salvo melhor juízo da crítica medica especializada. Nunca soube que decepção financeira, provocasse ataques epiléticos.

Dirá o leitor mais exigente que, ou o velho cearense mentia, ao relatar os fatos, ou era muito ingênuo, supondo que os desmaios do “Casaca” eram autênticos. De minha parte excluo a hipótese de ser mentira ou ingenuidade do velho que me contou. Ele nem sabia, nem eu, que um dia eu iria escrever sobre seu relato. Se eu soubesse, teria cavoucado bastante sua narrativa.

Cheguei a conhecer bem o caráter desse velho, meu parente, homem de total veracidade. Como ele estava convicto que os “ataques” não eram simulados? Porque, carregado para sua casa, o “Casaca de Urubu” demora para recobrar a consciência. Ficava mesmo doente, meio zonzo, não trabalhando no dia seguinte. Insisti muito nesse ponto — na tese da simulação — mas a convicção do cearense era inabalável. Ao que constava, o Casaca se machucava de verdade nas quedas, no nariz, na testa. O velho sentiu-se até ofendido com minha insistente descrença. O detalhe da possível simulação fora muito debatido na vizinhança, à época, quando havia poucas distrações na cidade. Agora, se o “Casaca de Urubu” era tão astuto e indiferente às próprias machucaduras nas quedas, aí já não sei. Mas a versão do desmaio autêntico era assunto quase pacífico, mesmo em um ambiente de gente desconfiada. O cearense, pelo que ouço — vivi em São Paulo desde dois anos de idade — é desconfiado por natureza.

Qual o ficcionista que se atreveria a inventar coisa tão anômala?  Nem mesmo um neurologista, dublê de escritor — a menos que tivesse tido um cliente nessas condições — teria lembrança de inventar essa parte final. Talvez o “Casaca de Urubu” fosse um exemplar único no mundo. Pouco tempo atrás, porém, conversando com um experiente médico vizinho, em São Paulo, sobre a estranha reação do desmaio, ele me disse que soubera de um caso semelhante, não de cobrança de dívidas, mas de desmaios autênticos quando a pessoa sofria uma grande decepção. Mulheres, com frequência, até em filmes, costumam desmaiar quando recebem notícias chocantes, como a morte súbita de uma pessoa querida, mas homens desmaiando para mim é novidade.

Minha particular opinião inclina-se — mas não garanto —, para a conclusão de que “Casaca de Urubu” fingia desmaiar, por vários motivos lógicos: primeiro, porque se não fizesse essa cena poucos devedores pagariam seus débitos e essa “moleza” seria contagiosa, tirando seu meio de vida; segundo, porque se fosse agressivo, ameaçador, poderia levar um tiro, ou facada, ou ele matar algum devedor; terceiro, porque, sendo violento, seria fonte permanente de ocorrências policiais, e o delegado  poderia proibi-lo de trabalhar nessa função, visando a paz pública. Ninguém pode ser chamado de “desordeiro” só porque desmaia com frequência.

                           Não sei como terminou a vida do “Casaca”. Pena que não tenha tido a oportunidade de conhecê-lo. Era um homem inteligente, um psicólogo, porque conseguia fazer o que ninguém mais conseguia. Sem burocracia, protestos, justiça ou violência, a não ser contra ele mesmo, mas em diminuta escala. Quem sabe, tendo filhos, tais desmaios possibilitaram estudo em universidade. Haveria tortura mental com sua técnica? Se havia, o Casaca se punia por isso, machucando-se na queda. 

OBSERVAÇÃO. 
Esta narrativa foi escrita vários anos atrás e publicada em livro impresso que publiquei, por conta própria — mais para distribuir aos amigos —, fazendo parte do livro de contos “Tragédia na Ilha Grega”. Como não houve difusão desse livro, fiz algumas alterações. O presente conto — ou será narrativa? — fará parte da 2ª edição, agora online,que venderei pela Amazon.com, logo que terminar a atualização de todos os textos reunidos no livro “Tragédia na Ilha Grega”, agora na versão e-Book.

Francisco Cesar Pinheiro Rodrigues
Desembargadro aposentado/SP
oripec@terra.com.br
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