terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Autópsia

Foto divulgação 

O despertador de Roland, criminalista dublê de escritor, tocou às cinco e quinze da manhã. Ele acendeu a luz do abajur de leitura e olhou para sua mulher, que já acordou mas continua imóvel, olhos fechados. Ela tem sofrido de insônia e geralmente dorme tarde. Não pretendia se levantar ainda escuro mas lembrando-se vagamente do motivo do marido ter acordado tão cedo pergunta: — Por que, mesmo, você vai sair? 

— Assistir a uma autópsia.  Tem que ser hoje, já está combinado. Como sou um escritor da escola realista quero ver a coisa pessoalmente. Não basta imaginar. Preciso para meu próximo capítulo.

 — Você já sabe quem vão autopsiar? 

— Não. Pretendo ver duas dissecações. Uma de homem e outra de mulher. Ainda não sei bem se na minha estória vou esquartejar macho ou fêmea. — Roland às vezes, brincando, usa humor negro, conversando com a mulher, justamente porque ela não aprecia seu estilo literário e é bastante franca. Ela acha que ele não precisa “apelar”, para encontrar leitores.  

— Você tem certeza de que o público aprecia essas barbaridades? 

O público masculino em geral gosta, mas é preciso, para compensar, caprichar no estilo, injetando no açougue um pouco de filosofia. 

Não seria um desequilíbrio emocional desses leitores? 

— Todo mundo é mais ou menos desequilibrado, querida. Não existe gente mais adoidada que certos psiquiatras, por exemplo. O perigo, neles, é que qualquer pessoa, bastando ser capaz de falar, pode ser enquadrada numa anormalidade acadêmica. Se, por outro lado, é reservado demais, “aí tem coisa...”. Um camarada “certinho em extremo” revelaria, só por isso, algum problema, a ser investigado. 

Uma hora depois Roland está entrando no necrotério. Pergunta a um funcionário onde fica sala do Dr. Moraes, seu amigo e ex-cliente.  Sem sua autorização, não poderia assistir aos exames. Essa autorização já fora concedida. Minutos depois aparece o médico.

— Ora viva! O nosso Zola brasileiro. . . — disse o Dr. Moraes, bem humorado, rosto redondo, corpo atarracado, óculos de metal branco. — De olho na Academia, hein? Já comprou o fardão?

— O fardão me prejudicaria, tiraria minha liberdade. Eu, para impressionar os acadêmicos, teria que retocar demais tudo o que escrevo — respondeu Roland apertando-lhe a mão. — Como é? Estou pronto para o massacre.

— Que tipo de necropsia quer assistir?

— Que tipo como? Há diferenças?

— Claro, depende da finalidade. Bom, se não há especificação, eu escolho. Bem...Você vai ver necrópsias de duas pessoas que morreram sem assistência médica. Geral­mente são pessoas sem recursos. Para enterrar é preciso verificar a "causa mortis", quando não se sabe porque morreu. Se a morte foi violenta, ou suicídio, também é preciso uma necrópsia.

— Pra mim qualquer morte serve. Uma pessoa inteira, claro. Preciso dos detalhes.

— As necrópsias são feitas em outro setor, aqui perto.

— Você não diz autópsia. Diz necropsia. Dizer “autópsia” está errado?

— Acho mais apropriado dizer necropsia. “Autópsia”, do grego, rigorosamente seria um autoexame. Necrópsia seria o exame de algo alheio, mas isso de nomes não tem impor­tância. Vamos indo. 

Caminhando depressa, para acompanhar o médico, Roland sentiu cheiro do formol e outros odores que não podia identificar. Ouviu alguns ganidos.

— Parece que estou ouvindo ganidos de cães. É isso?

— É. São os estudantes de medicina fazendo expe­riências.

— Dolorosas? — indagou Roland, penalizado.

— Às vezes. Procuram anestesiar antes. 

 Pararam em frente a uma porta de vidro.

— Quer dizer que nunca assistiu a uma necropsia, ou operação? Não vai sentir-se mal, desmaiar?

— Penso que não. Para isso sou algo frio. Se sentir qualquer coisa esquisita, saio um pouco.

— Um aviso: não se encoste em nada, lá dentro. Os cadáveres podem estar com alguma doença conta­giosa e você levaria os agentes patogênicos consigo. Convém enfiar as mãos nos bolsos.

Roland acatou a sugestão e ambos entraram na grande sala.

Junto à entrada, no lado esquerdo, havia uma mesa com três pequenos cadáveres. Crianças bem novas. Duas escura e a outra branquinha. Apresentavam imenso rasgo do pescoço ao púbis, mas o rasgo já fora costu­rado. Mesmo que estivessem vestidas e deitadas numa cama, não pareceriam crianças dormindo. A morte deixara a marca nos olhos, ainda que fechados. As perninhas são bem arqueadas, sinal de raquitismo. Despertam um sentimento de perda e abandono.

Ao lado direito da porta vê-se uma fileira de mesas com pequenas rodas nos pés. Em cima de cada mesa, um cadáver. Alguns, com o rosto coberto. O mais pró­ximo de Roland, de face descoberta, é um rapaz moreno, de seus vinte e cinco anos, barbudo, rosto estreito, corpo magro, assim percebido apesar de coberto com um lençol até o pescoço. Seu rosto lembra a representação usual de um Cristo europeu de pele clara. Alto, seus pés magros e amarelos saem muito além do lençol que o cobre, cortado para pessoas de estatura mediana. Roland fica observando o moço e, conforme a posição do olhar, o cadáver lembra também uma conhecida imagem de Tiradentes, esquartejado depois de enforcado.

A mesa vizinha está ocupada pelo cadáver de um homem corpulento, de seus 40 anos. Tem o rosto inchado e expressão de homem bravo.

— Com licença — pediu um enfermeiro, interpondo-se entre Roland e o cadáver do homem de feições duras. Em­purrou a mesa com rodas até que ela ficasse bem paralela à mesa das autópsias, que tem o comprimento de três metros, mais ou menos. Do lado onde ficam os pés dos autopsia­dos existe uma pia de aço inoxidável embutida na pró­pria mesa. Nessa pia os órgãos são lavados e cortados e fatiados para exame.

Este cadáver foi transferido com alguma brutalidade — prática, rotineira —, da mesa móvel para a mesa fixa, sem a menor “deferência” a um ser humano, mesmo morto, como se lidassem com um grande saco de batatas. Como o homem era bem pesado, os dois enfermeiros tive­ram que fazer muita força, coordenada — “vamos juntos: um, dois, três, já!” —, para transferi-lo de mesa, um segurando nos pés e outro, o mais forte, encarregando-se do tronco. Por causa do esforço da remoção, o pesado cadáver foi praticamente rolado em cima da mesa de autópsias, quase caindo do outro lado.

Os braços do morto estavam rígidos e dobrados, como em posição de defesa, numa luta de boxe. Nessa posição impossibilitaria o trabalho do enfermeiro que se ocuparia do tórax e da cabeça. Era, portanto, necessário esticar os braços do combativo defunto maduro. Rolando, sempre imaginativo, involuntariamente pensou: — “Nosso Mike Tyson branco não vai concordar...”

Dito e feito. Foi duro, de fato, conseguir baixar a guarda do falecido, devido à rigidez cadavé­rica. Um dos enfermeiros, o mais franzino, tentou es­ticar o braço direito, dando uma puxada. Nada conse­guindo tentou de novo, fazendo mais força, sua mão direita segurando a mão direita do morto. Pareciam, para Roland, estarem disputando uma "queda de braço". O primeiro resultado foi um empate honroso para o defunto que, certamente, fora um homem fortíssimo.

Não desejando passar vexame frente ao visitante, o enfermeiro fran­zino, como que adivinhando a imaginação de Roland, deu uma rápida olhada para o escritor e usou as duas mãos para esticar o braço enrijecido. Roland, viciado ficcionista, logo imaginou o protesto do morto: "Assim não vale!". Valendo ou não, o vivo, usando o peso do seu corpo, quase pendurado, ven­ceu a parada, esticando completamente o braço do fa­lecido, enquanto o outro enfermeiro segurava do outro lado, impedindo que saísse da posição certa.

Esticados os braços, o enfermeiro que cuidava da cabeça enfiou um bloco de madeira, à guisa de calço, por baixo das costas do cadáver, que ficou com o peito bem erguido e a cabeça caída para trás. A seguir, pegou uma faca de cozinha, das grandes, e afiou a lâmina em um amolador comprido. Colo­cou o amolador de lado e começou a cortar o couro cabeludo, iniciando a operação por trás de uma das orelhas.

Fez um talho bem retilíneo, cortando fundo, com pequenos movimentos de vai e vem da faca, para que o fio da lâmina chegasse até o osso do crâneo. E assim foi trabalhando, até chegar atrás da outra orelha. Largou a faca e fincou as unhas no corte. Agarrou com força uma das bordas e começou a puxar o couro cabeludo na direção da testa.

O couro cabeludo estava bem aderente aos ossos, Não desgrudava facilmente. Estalava com seguidos “tac”. Quando a resistência era maior, o enfermeiro ajudava a separação com a faca, cortando os liames ainda existentes por baixo. Assim fez, até que o couro cabeludo, já pelo avesso, veio parar perto da boca do defunto.

Com isso o cadáver ficou horrendo, com uma cobertura sanguinolenta cobrindo o rosto, desde a testa até o lábio superior. E como o cabelo não era curto, parecia que o cadáver era barbudo e tinha parte do rosto coberto por uma máscara de carne viva cobrindo os olhos.

Até esse momento Roland conseguira aguentar. Vinha engolindo em seco. Seu pomo de adão subia e descia. Mas foi preciso mobilizar totalmente sua resistência quando o enfermeiro pegou um serrote de arco e começou a serrar a testa, para tirar a tampa. Aquela testa nua e ensanguentada, serrada com a maior sem-cerimônia, foi um espetáculo que só não provocou vômito porque Roland sempre teve imensa dificuldade para vomitar.

O enfermeiro serrou completamente o crânio, demarcando uma larga calota. Com isso cortou também os miolos que estavam próximos ao crânio.

Terminada a utilização da serra fina, o enfermeiro tentou separar a calota com o mero emprego da mão. Fincou as unhas na fenda dos ossos, como fizera antes com o couro cabeludo, Mas não conseguiu seu intento. Talvez por não conseguir um espaço suficiente para in­trodução das unhas.

Tudo era rotina para o enfermeiro. Pegou uma talhadeira e um martelo. Colocou a lâmina da talhadeira na fenda da testa e com o martelo deu algumas pancadinhas a na outra extremidade, forçando facil­mente a separação das bordas. Guardou a talhadeira e, com as unhas bem apoiadas na borda do osso separou a calota, que veio com boa porção do cérebro.

Usando as duas mãos, o enfermeiro retirou com cuidado o encéfalo viscoso, que fazia "cloft, cloft", ao se desgrudar do crânio.

Nessa altura, o outro enfermeiro já havia aberto a barriga, do púbis ao externo. Roland nem o vira fazer o grande corte longitudinal do abdómen, de tal modo se impressio­nara com o que ocorria na cabeça do cadáver. Quando afastou os olhos da cabeça sem tampa, o tórax já estava aberto. O segundo enfermeiro, munido de uma tesoura especial, de lâminas curtas e recurvadas, dedicava-se a cortar ossos protetores do tórax para poder extrair e exa­minar o coração e outros órgãos.

O mesmo enfermeiro — ou seria o outro? Roland já estava meio grogue na carnificina — revolveu os intestinos esverdeados e arrancou o fígado, que foi colocado perto da pia, após o que foi lavado e fatiado. O enfermeiro cortava e examinava a cor das fatias, trocando algumas palavras com o médico.

Em seguida, pegou o cérebro que seu colega lhe dera e passou a cortá-lo, também em fatias.

Enquanto esse enfermeiro examinava as fatias dos órgãos, o outro pegou um bocado de serragem, que estava num saco aberto, ao lado da mesa, e preencheu o vazio do crânio com esse pó de madeira. Recolocou a tampa de osso na cabeça e puxou de volta o couro cabeludo. A calota óssea ficou nova­mente coberta.

— Agora ele ficou “desmiolado” — brincou o médico que perdera toda a sensi­bilidade ante espetáculos dessa natureza.

Roland, vendo a boca meio aberta do morto, es­tranhou:

— A língua dele está muito escura, não acha? A morte escurece a língua?

— Onde? — perguntou o enfermeiro, curioso. Forçou o maxilar para baixo, abrindo bem a boca do defunto. Não satisfeito, querendo melhor examinar, agarrou com força a língua e puxou-a o máximo que pôde.

— Não há nada — concluiu, dando uma examina­da. — É assim mesmo — disse, olhando a língua enor­me, que quase se assemelhava a uma língua de vaca, só que menos volumosa. Satisfeito com a inspeção, empurrou a língua de volta, fechando a boca do falecido. Em seguida, pôs-se a cos­turar o couro cabeludo, utilizando uma espécie de agulha de sapateiro. Nesse trabalho, manipulava com brusquidão a cabeça do defunto, pouco ligando para a cara indignada do homem moreno que, no céu, ou no purgatório — Roland pensou — deveria estar fervendo de raiva com o desrespeito. Em certos momen­tos, por necessidade do serviço, empurrava as boche­chas de um lado para outro. Conforme a posição, a expressão do morto parecia mais zangada ainda com tais insultos, quase tabefes com a mão espalmada.

Os enfermeiros, com a longa prática, estavam bem sincronizados nas tarefas. Enquanto o da cabeça costu­rava grotescamente o couro cabeludo, o outro rapidamente tirava umas conchas de sangue da cavidade abdominal e jogava os órgãos — fígado, tripas, pâncreas — de volta. O cérebro também foi jogado dentro do ventre. Roland não pôde deixar de imaginar o trabalho que daria aquele cidadão, havendo um juízo final, com os mortos saindo dos tú­mulos. Para ler a sua alma seria preciso examinar a pança. Como muita gente que conhecia.

A barriga também foi costurada depressa, com um pouco de serragem dentro para absorver o sangue que ainda restara.

Roland, depois daquela cena de violência macabra, achou necessário descansar um pouco. Pediu para sair. No corredor, respirou fundo e depois sentiu profunda necessidade de fumar. Deu uma tragada e concluiu que pouco sabia da vida, em seu sentido mais profundo, apesar de seus quarenta anos de vida.

— Como é? — indagou o médico. — Pensei que o senhor fosse desmaiar. Não seria fato incomum, para quem assiste pela primeira vez.

— Quantas autópsias vocês   fazem por dia?

— Umas quarentas, em média.

— Estranhei que o cadáver não fedia. Pelo menos não tanto quanto eu esperava.

— É que saiu do congelador. Mas o senhor precisa ver quando falta energia elétrica durante um dia ou dois. Já aconteceu. Cinquenta cadáveres se decompon­do, não há cristão que aguente.

— Nesses casos, como os senhores fazem?

— Com mau cheiro e tudo!

— Você tem religião, Dr. Moraes? Vendo uma autópsia, constatamos que o homem não é nada. Um pe­daço de carne organizada, sempre prestes a se decom­por. Uma lição de humildade, o espetáculo horrendo que acabei de presenciar...

Sou católico... Vamos continuar? — sintetizou o médico. — Às nove e meia preciso comparecer a uma reunião. 

FIM (19/01/2021)

 

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