segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Quando os governantes enlouquecem

Populações que vivem sob ditaduras e democracias não diferem muito na condição de vítimas indefesas de atos de loucura de seus governantes. Refiro-me, claro, àquela demência de aparência mais circunspecta, engravatada, em que o paciente não baba, não gargalha com esgares de insânia, não planta bananeira em recepções diplomáticas nem acena de modo obsceno às horrorizadas esposas dos embaixadores estrangeiros.

Qualquer filósofo de ciência política — não sendo ele também contaminado — provavelmente sente-se intrigado com essa ausência de defesa contra decisões totalmente insensatas e que podem levar à perdição de um povo ou até mesmo do planeta. As mentes mais lúcidas percebem que o rebanho, meio cego — vitimado por uma catarata mental induzida pelo emaranhado de informações e opiniões contraditórias —, está sendo conduzido ao abismo mas nada pode fazer a tempo. A não ser, talvez, apelando para uma primitiva violência homicida que representa a própria negação da civilização. Assim, “civilizadamente”, embora gemendo e chorando, deixa-se conduzir ao matadouro, bem ciente do seu destino. Talvez entoando o hino nacional porque, afinal, é um patriota, obediente a seu monarca, louco ou burro — no geral ou na particular decisão.

Apesar do avanço na farmacologia jurídica, não há técnica instantânea capaz de impedir atos insanos. Quando da Guerra Fria, o simples pressionar de um botão poderia ter desfigurado o planeta. Kruschev, no incidente da remessa de foguetes para Cuba, em 1962, mandou a frota russa recuar. Esse recuo exigiu muita coragem moral porque era altíssimo o risco de um conflito nuclear, considerando-se a seriedade da advertência americana. Milhões morreriam, em ambos os países. Para evitar a tragédia de uma terceira guerra mundial Kruschev assumiu o risco da própria desmoralização. Saiu enfraquecido porque pensou nos milhões de russos que morreriam queimados ou de câncer oriundo da radioatividade. Os militares russos, no entanto, o censuraram por “ceder”. Um ano depois perdeu o poder. “Falta de firmeza”. A tal ponto vai a estupidez humana.

 As democracias ainda podem reagir um pouco mais que as ditaduras, quando pressentem o perigo da insânia. Mas não sem grande lentidão, através de complicados mecanismos jurídicos, tais como o “impeachment”, o “recall” e, talvez, outras medidas judiciais de demorada discussão e tramitação. O problema é que, constatado finalmente que o Presidente foi vítima de um delírio momentâneo de avaliação, o mal estará consumado. O jeito é erguer os ombros e pagar pelas conseqüências, seja com sangue, tributos ou a vida de milhares. Já com um ditador assumido, com poderes absolutos, nem mesmo é possível uma reação tardia, a não ser com um golpe de estado, ou complô de assassinato. Algo extremamente arriscado, com eliminação imediata de todos os participantes, no caso de insucesso. O louco manda prender e matar quem disser que ele está louco. E quem se atreve a amarrar o guizo no rabo da jaguatirica hidrófoba?

Presumo que todos aqueles que leram sobre a política européia nos anos quarenta do século passado concordam que Hitler decidiu — mal — a sua sorte, e a do povo alemão, quando resolveu invadir a União Soviética, notadamente na proximidade do inverno. A Alemanha exauriu-se nessa empreitada. Já com tantos inimigos pela frente, por que mais um, forte — motivado pela experiência do socialismo —, distante e protegido pelo inverno? A decisão era tão insana que, finda a guerra, percorreu a Europa uma anedota que, pelo seu simbolismo, peço licença para recontar neste espaço que recomenda abordagens sérias. A anedota diz que Hitler, no apogeu de sua força militar, ficou sensibilizado ao saber que em um determinado hospício alemão havia um pavilhão cheio de ferrenhos admiradores. Eles o imitavam em tudo: nos gestos, na fala, no bigode, na pastinha de cabelo na testa, etc. Comovido com tanto amor, avisou a administração do manicômio de que no dia tal faria uma visita aos fãs. Na data marcada, acompanhado de seguranças, apareceu. Não obstante alertado do perigo insistiu que seus guarda-costas ficassem do lado de fora. Ao ingressar no pavilhão notou, espantado, que todos os seus admiradores estavam fardados exatamente como ele. Parecia-lhe estar numa galeria de espelhos. Com lágrima nos olhos, ergueu os braços com intenção de abraçá-los mas em vez de abraços ouviu urros de indignação. “Impostor! Imposto!”, gritavam os lunáticos, que passaram a agredi-lo, instalando-se uma batalha campal de todos contra todos. Com o alarido, os seguranças entraram armados no recinto e, incapazes de identificar o verdadeiro Hitler, pouparam aquele que lhes parecia o autêntico Führer  e metralharam os restantes. No dia seguinte, “Hitler” invadiu a Rússia.

Está para ser explicada a influência de substâncias químicas em decisões governamentais esdrúxulas que alteraram, para pior, o curso da história.  Muitos anos atrás li, em casa alheia, fazendo hora, algumas páginas de livro escrito por um médico alemão. Ele censurava um colega de profissão que cuidara pessoalmente da saúde de Hitler. Como este sofria de crises de depressão e melancolia, seu médico aplicava-lhe injeções de “vitaminas” que o energizavam instantaneamente. Provavelmente eram anfetaminas, ou coisa do gênero, assunto então mal conhecido. Talvez nem Hitler soubesse o que entrava em seu sangue e subia até o cérebro, decidindo por ele. Substâncias que só foram melhor estudadas, em suas mais distantes conseqüências, depois da II Guerra Mundial (pilotos, inclusive ingleses, de aviões de combate usavam pílulas de anfetaminas para lutar contra o sono e aumentar a capacidade de atenção). Assim, é bem possível que a euforia fornecida pelas injeções tenha influído poderosamente em decisões visivelmente erradas do ditador, já muito erradas em sua rancorosa visão do mundo. E, em assuntos de estado, depois de praticado o ato arriscado, não há como voltar atrás. O chefe de estado jamais admitirá que tomou aquela decisão porque estava meio bêbado ou “eufórico” com um remédio que tomara. Tentará racionalizar sua atitude. Em competições esportivas importantes, a regra é examinar a urina dos atletas vencedores. Nos atos de governo, de muito maior repercussão, seria impensável e ridículo a coleta de urina de Sua Excelência, quando decide algo estapafúrdio, para eventual nulidade caso comprovado que o chefe estava dopado. Fica aqui bem explícito que a menção ao teste serve aqui apenas como uma comparação engraçada.

Por que esta longa introdução? Porque ou é má-fé, ou imensa cegueira política a decisão do primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, de continuar com as obras da rampa de acesso às mesquitas sagradas de Jerusalém, bem como as escavações arqueológicas no local. A decisão em exame certamente, nada tem a ver com o que foi dito atrás, com relação a estimulantes químicos. Seria irresponsabilidade demais. O incidente parece ser mais um distúrbio momentâneo da capacidade de avaliação, talvez produzido por excesso de preocupação, trabalho ou rancor. O certo é que tal decisão vai gerar imensas conseqüências, suportadas tanto por árabes quanto por judeus e, por tabela, por nós todos, da aldeia global.

Qualquer chefe de governo de juízo normal, ao perceber a reação violenta e espontânea dos muçulmanos às escavações, mandaria logo parar as obras, mesmo estando Olmert convencido de que prejuízo não haverá. Por simples e elementar prudência, para não jogar mais gasolina na antiga fogueira. Pelo menos que parasse até que a comunidade internacional convencesse os muçulmanos de que não haveria prejuízo. Afinal, aquilo não passa de cimento e tijolo. Não é tão importante assim. Mas não, Olmert disse que continuaria as obras, por cerca de um ano — um ano de mais hostilidades! —, porque “quem estudar, ou examinar, bem o projeto de reconstrução, verificará que não haverá prejuízo”. Foi assim, mais ou menos, o que ele disse, justificando sua teimosia. Será que ele não percebe que seu projeto técnico não será jamais estudado, pelos muçulmanos, com a calma minúcia e frieza próprias de engenheiros, arquitetos e especialistas de História?

Em assuntos religiosos e raciais manda a mais elementar prudência não provocar suscetibilidades, mesmo que estejamos convencidos de que, “bem examinado o tema’, não haverá prejuízo para ninguém. Em temas polêmicos como a religião, não existe o que se denomina “bem examinado”. Tente alguém, por exemplo, “bem examinar”, “com toda isenção”, os fundamentos da religião de alguém — mesmo de um amigo —, para ver se ele reage com a calma de um filósofo (paciente...) caso você conclua que há incongruências na religião dele. A respiração dele se altera enquanto mal ouve, já pensando em contra-atacar. Cada argumento será uma bofetada, não um argumento, por melhor que seja explicado. Isso, conversando com um amigo. Com inimigos, então, nem se fala... E não se diga que judeus e palestinos são amigos fraternos e tolerantes de longa data.

Olmert, não percebendo o óbvio, a reação puramente emocional às escavações, exibe uma falha intelectual incompreensível, incompatível com o nível intelectual do país que lidera. Agora, se se trata de uma manobra proposital para prorrogar as hostilidades, a tolice grosseira fica agravada pela má-fé. E quem pagará por ela não será apenas os palestinos.

Para que não se alegue que o autor destas linhas tem prevenção contra Israel, cabe também mencionar a estrema insensatez do primeiro-ministro palestino, Ismail Haniyeh, ao dizer que Hamas jamais aceitará a presença do Estado de Israel. O que ele ganha com isso, exceto a aprovação de alguns adeptos que vivem distantes da realidade? Israel tem uma população acima de cinco milhões de habitantes. É um fato consumado, justa ou injusta tenha sido a política que orientou a criação do Estado de Israel. Não é cabível expulsar ou aniquilar um país já consolidado fisicamente e com essa dimensão. Pretender isso equivaleria a um infantil levante de índios pele-vermelhas, incas, aztecas, maias, xavantes e tupinambás visando tomar o poder pela força em toda a América porque suas terras foram invadidas pelo homem branco.

O que leva Ismail Haniyeh a insistir na tecla da “não aceitação de Israel”? Será a idéia — à primeira vista moral — de que não pode voltar atrás na sua promessa, constante da plataforma eleitoral? Se assim é, Haniyeh precisa se atualizar em política. Líderes legitimamente eleitos podem e devem alterar seus objetivos — mesmo solenemente prometidos —, se isso é melhor ao povo que o elegeu. A respeito, conta-se uma passagem interessante de Jânio Quadros, um político brasileiro que esteve muito em evidência antes de 1964. Eleito governador — ou teria sido prefeito? — ele foi insistentemente cobrado por um cidadão que lhe emprestara várias peruas quando da campanha eleitoral. O cidadão, em retribuição do apoio dado, queria gerir uma determinada função bem lucrativa do Estado. E Jânio temia pelo que pudesse acontecer. Assim, após ser lembrado da promessa feita em campanha, respondeu: “Quem lhe prometeu isso foi o candidato Jânio Quadros. Já o governador Jânio Quadros indefere o pedido”.

Haniyeh, que deve ser um homem honrado e empenhado na palavra dada — talvez até demais...—, deve pensar apenas em uma coisa, depois que foi eleito: o que será melhor para os palestinos? Manter a promessa eleitoral — desgraçando a população com dificuldades sempre maiores e até afrontando a opinião internacional — ou aceitar a realidade inevitável e trabalhar para melhorar as condições de seu povo? Governantes muitas vezes têm que decidir contrariando a opinião de quem os elegeu, ao constatar que sua visão governamental — se mentalmente honesta! — está melhor informada que a de seus eleitores. Para isso é um líder, inventando caminhos, não mero cumpridor de presumíveis vontades, dos eleitores, concebidas tempos atrás e com conhecimento menos abrangente das situações. O “presumíveis”, aqui, decorre do fato de não haver total certeza de que seus eleitores pensam hoje exatamente como pensavam no momento do voto.

Francisco Pinheiro Rodrigues (14-2-2007)


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