segunda-feira, 24 de março de 2014

VALORIZEMOS O AUTODIDATA

Resumo: sugere-se lei que permita a um autodidata comprovar que dispõe dos conhecimentos necessários ao exercício de determinadas profissões de nível universitário.                           
Candidamente — reconheço, porque não sou cego à minha insignificância política — prossigo dando sugestões que penso úteis, justas, práticas, factíveis e que talvez despertarão entusiasmo em parte do eleitorado. Pelo menos aquele genuinamente inteligente e capaz de pensar com independência. Algo que requer bravura, tal o medo generalizado de relativizar pedagogias datadas de séculos, quando o conhecimento era transmitido apenas em salas de aula. O professor falando e os alunos só ouvindo — embora talvez pensando em outras coisas quando o tema, embora importante, não despertava seu particular interesse.
Afastando, de início, qualquer eventual dúvida sobre minha intenção, deixo expresso meu sincero respeito aos professores em geral, em todos os níveis de ensino. Quase todos uns idealistas, insuficientemente remunerados, merecedores de um respeito muito superior ao atualmente existente. Tanto da parte dos alunos quanto das diretorias e dos governos. Confesso minha inveja dos professores, porque eu teria imensa dificuldade em  exercer tal função, obrigado a seguir o programa exigido pelas autoridades da educação. Minhas aulas seriam desorganizadas. A todo momento eu me desviaria do roteiro porque “uma coisa puxa outra” e lá iria eu, arrastado pelo nariz, vítima das conexões neuronais sobre as quais tenho pouco controle. Pessoas no auge da paixão — de qualquer natureza —, querem pensar em coisas diferentes mas não conseguem. Livros inteiros existem, bons, medianos ou maus, porque seu autor, sem nenhum plano, escreveu o primeiro parágrafo. O “resto” é traquinagem autônoma de células, ditas nervosas mas nem sempre muito inteligentes.
Sugiro aqui, como disse, que qualquer pessoa, acima dos 18 anos, possa comprovar, em banca examinadora idônea — reconhecida pelo governo —, seu conhecimento das matérias lecionadas em curso superior, obtendo um certificado que lhe permitiria exercer, depois, uma profissão até mesmo das mais prestigiadas. A Alemanha — se não fui mal informado anos atrás —, permitia isso. Se acolhida a ideia pelo legislador brasileiro, o interessado poderá estudar sozinho. Sentindo-se conhecedor das matérias, pagaria uma taxa e submeter-se-ia aos testes necessários, inclusive com exame oral. Se aprovado, receberia o certificado de aprovação, registrável no Ministério da Educação. Quando exigido, depois, um Exame de Ordem, teriam que passar por ele, da mesma forma que os estudantes que estudaram em Faculdade.
 — “Absurdo!” — dirão os tradicionalistas mais ferozes. — “Sem frequentar uma Faculdade ‘é proibido’ conhecer, a fundo” — fundilhos, digo eu —, “qualquer área do saber, de modo a poder utilizar esse conhecimento como profissão”. E a crítica prosseguirá: — “Saiba quanto comprovadamente souber — ou imagina saber —, todo cidadão ‘deve’ estar proibido de lecionar, ou exercer uma nobre profissão liberal se não passou cinco ou seis anos sentado em bancos universitários. O sacrifício da imobilidade da parte sul de sua anatomia é um comprovante físico da determinação de seu dono. Serve também como contrapeso da ‘excessiva’ mobilidade na escala social,  possibilitando a qualquer joão-ninguém — até mesmo um lixeiro —, se transformar em professor, ou ‘doutor’. Quando perguntarem ao catedrático qual foi sua profissão anterior ele diria, meio convencido: ‘coletor de resíduos’. Não seria isso uma desmoralização?”
John Stuart Mill, um extraordinário filósofo e economista inglês, nascido em 1806, foi educado pelo pai. No século dezenove era comum, na aristocracia, ou na burguesia, os jovens serem educados por professores particulares, os “preceptores”. Máximo Gorki, um dos maiores escritores russos, não teve educação superior e tornou-se mundialmente conhecido. Na área literária, principalmente, penso que existiram mais autores sem formação acadêmica do que com ela. Apenas gostavam muito de ler e seus “laboratórios” eram os variados empregos humildes que exerceram e lhes ensinaram, sem fantasias, o que é a vida real e a motivação profunda dos seres humanos.
Acredito que só não houve maior número de celebridades, sem curso superior — e não só na literatura —, porque não havia, então, qualquer estímulo para estudar um assunto a sério — inclusive com as “matérias intragáveis”, porém necessárias  —, ministrados pelas entidades de ensino. O “simples saber” — mesmo considerável —, não lhes permitiria ganhar a vida com melhor remuneração. Por isso, liam somente os temas que lhes agradavam. Se, porém, a legislação for modificada e obedecida com seriedade — esse o ponto essencial,  a seriedade —, haveria estímulo para o autodidata estudar também as matérias mais aborrecidas, constantes do programa escolar. Do programa, insisto, sem privilégios em termos de exigência cultural.
Seria apenas uma forma de incentivar o estudo sem o ônus físico de frequentar a Faculdade. Principalmente para aqueles, ou aquelas — já não tão jovens — que, por falta de recursos “no momento certo” de suas vidas, tiveram que cedo trabalhar para se manterem, ou para cuidar da família. Não é justo cercear ambições de ascensão social, via conhecimento profissional, só pela desvantagem de ter nascido em família de poucos recursos. Em vez de estimular os jovens a subir na vida apenas jogando futebol, ou lutando o vale-tudo, utilizariam o escasso tempo livre “queimando” as pestanas e as orelhas — lendo livros, revistas especializadas, apostilas —, e ouvindo CDs e DVDs.
A novidade seria uma oportunidade, a última esperança —  principalmente para aqueles, ou aquelas, na faixa dos 30 aos 50 anos, casados, que poderiam aprender no lar, sem a enorme perda de tempo gasto com condução, inundações, medo de chegar em casa tarde da noite e eventuais greves de professores. São inúmeros os feriados “emendados” no Brasil. E, convenhamos, não é fácil a um cidadão, após trabalhar oito ou mais horas, enfrentar o enervante problema do transporte até a escola; ouvir, cansado, as aulas teóricas e voltar para casa, tarde da noite, com medo da bandidagem cada vez mais ousada. E ousada também por ignorância. Essa aventura diária, à noite, é especialmente angustiante para as mulheres que querem estudar e melhorar de vida.   
Na advocacia brasileira, tivemos, no passado, grandes “rábulas”, capazes de debater, no júri, sem vexame, com gente formada em Coimbra. No jornalismo, o talento natural, aliado à sede de conhecimentos, permitiu que jornais e revistas contratassem  notáveis articulistas que não frequentaram qualquer faculdade de jornalismo. E a presente sugestão não serve apenas para pessoas que nunca frequentaram curso superior. Um advogado, por exemplo, insatisfeito com sua profissão, poderia tornar-se também economista, ou historiador, ou psicólogo, etc., sem ter que frequentar o específico curso. Um médico poderia, igualmente, formar-se em Direito.
Não se alegue que a vida acadêmica “não oferece aos alunos apenas o conhecimento transmitido em salas de aula. As ‘trocas de ideias’, entre os alunos, e as conversas entre alunos e professores, complementam a formação universitária”.
Essa possível objeção seria mais fantasiosa que realista. Frequentei uma boa Faculdade de Direito, em São Paulo. e posso garantir que quando os meus colegas saiam da classe, nos intervalos, ou após o término das aulas, na parte da manhã, não havia qualquer discussão — séria —, sobre o que havia sido ensinado. As conversas eram sobre tudo, menos sobre a Ciência do Direito. A energia e alegria naturais da mocidade não aguentavam “esticar” ainda mais o sacrifício da imobilidade forçada, acrescida da obrigação de seguir considerações jurídicas, geralmente não fáceis de digerir imediatamente, antes que desabasse, da boca do professor, nova carga de erudição. Os mestres não faziam isso por sadismo.  Apenas tinha apenas que cumprir o programa.
Quanto ao contato entre alunos e professores, nos intervalos, isso não existia. O professor também não era de ferro. E a remuneração era ingrata. Um engenheiro que eu, quando juiz, costumava nomear para perícias, formado na prestigiada Escola Politécnica — nata de nossa engenharia — certo dia desabafou dizendo-me que só continuava dando aulas na grande Universidade porque sua qualificação como professor ajudava-o a obter nomeações como perito. Dizia que mal sentia “vontade de abrir a boca” para iniciar a aula. Espero que hoje não persista o anterior desestímulo para lecionar em universidades do governo.
 É óbvio que minha sugestão não seria aplicável às atividades pedagógicas que dependam estreitamente de atividades físicas, com utilização de aparelhos, laboratórios, etc.
Suponho que Odontologia, Medicina, Educação Física, Engenharia, Arte Dramática, Música, Balé, Informática e outras profissões, aqui não lembradas, estejam de tal modo vinculadas à práticas físicas que seria impossível aprender uma profissão apenas lendo livros e assistindo aulas transmitidas com CDs e DVDs. A não ser que a futura legislação permita que o cidadão possa estudar em casa o lado estritamente teórico das matérias e depois frequentar um ou dois anos de atividades práticas. Assim, por exemplo, um interessado em se tornar médico “retardatário”, estudaria sozinho certas matérias, tais como anatomia, nomenclatura médica e outros assuntos teóricos e depois assistiriam, na Faculdade, as aulas e práticas lidando com cadáveres e coisas do gênero. Mas se o autodidatismo não pode ser aceito em tudo, pode em muitas atividades ser um substitutivo para o aprendizado tradicional.
História, Geografia, Português, Filosofia, Sociologia, Economia, Direito, Matemática, Psicologia, Letras, Ecologia, Relações Internacionais, e outros conhecimentos podem ser assimilados apenas com a leitura. O que não impede que o autodidata peça, quando entender necessário, algumas orientações periódicas de professor.
Acho lamentável que um homem, ou mulher, tenham sido obrigado a renunciar ao sonho de ascensão social, via conhecimento, apenas por não ter tido recursos, ou tempo, para frequentar uma Faculdade. Em vez de, por exemplo, se realizar como professor universitário, ou advogado, ou psicólogo, como sempre quis, viu-se obrigado a ganhar a vida como motorista, garçom, ou garçonete. Não que haja qualquer desdouro no exercício de tais profissões. Apenas não era isso o que eles queriam da vida.
Alguém dirá que ser autodidata, em assuntos mais difíceis, exige invulgar força de vontade. Realmente exige. Mas cada vez menos. Já existem aulas e palestras gravadas pelos melhores professores do país.
Estudei em uma ótima Faculdade de Direito — prefiro não dizer qual, tendo em vista o que se segue — e lembro-me de um professor que, embora competente, nunca se preocupou em tornar suas aulas mais interessantes. Aliás, fazendo justiça, sua matéria jamais poderia ser intrinsecamente interessante, nem que o compenetrado mestre desse cambalhotas e dramatizasse o tema com gritos e convulsões.  Assim, ele só podia mesmo é sentar-se, pegar suas fichas e praticamente lê-las em voz alta. Posso garantir que 95% da classe não acompanhava a exposição, realmente muito difícil de acompanhar.
Certo dia, era tal a minha dificuldade em seguir aquele labirinto de detalhes que me vi forçado a fechar os olhos para não me distrair com o brilho da calvície do professor que sempre me fazia lembrar o crânio de um famoso diretor de cinema, Cecil B. De Mille. Felizmente eu estava me empenhando ao máximo em seguir a exposição porque a certo momento ouvi o mestre dizer, em tom irritado: —“O senhor aí! O que eu estava dizendo?”
A frase, me fez abrir os olhos. Era a mim que ele se dirigia. Como eu seguira, penosamente, suas palavras, pude repetir o que ele havia dito. Algo surpreso, ele se explicou: — “Ué, como o senhor estava de olhos fechados, pensei que estava dormindo!”. Então eu lhe respondi que costumava fazer assim para prestar melhor atenção. Não mencionei, claro, o fator crânio. Ele deve ter ficado contente com minha explicação. Reafirmo que esse professor, obviamente já falecido, conhecia como poucos a matéria que lecionava.
Algumas objeções que certamente latejam na cabeça do leitor são as seguintes: um autodidata terá condições de estudar sozinho as matérias ensinadas em um curso superior? O interessado poderia ter apenas o curso primário para ter o direito de comparecer a uma banca examinadora de alto nível cultural?
O grau de exigência de instrução escolar anterior eu deixo a cargo dos entendidos. A meu ver, bastaria ter completado o que, em meu tempo, era chamado de “curso ginasial”. Digo isso porque o computador hoje oferece inúmeras vantagens com o tal “hipertexto” —, com links, em cores diferentes que, clicados, remetem o usuário a outros textos explicativos. Vários dicionários, ou glossários, auxiliam, gratuitamente, quem quiser aprender qualquer assunto.
Técnicas ou “dicas” sobre como ler assuntos mais difíceis estão disponíveis aos mais resolutos. Um texto difícil pode ser lido linearmente, linha por linha, do começo ao fim. Ou pelo método “comer pelas beiradas”, salteando, lendo aqui e ali, só para se familiarizar com o assunto  mas depois ler tudo linearmente”. A leitura é uma arte, ou até mesmo ciência.  Goethe, o incontestado gênio literário alemão, dizia que “Muitos não sabem quanto tempo e fadiga custa a aprender a ler. Trabalhei nisso 80 anos e não posso dizer que o tenha conseguido”.
As Faculdades não precisam temer a fuga em massa de alunos, com desemprego de professores, porque relativamente poucas pessoas se disporão a estudar sozinhas.
Caso desanimem no meio do caminho, pelo menos terão aumentado sua cultura, algo extremamente necessário nesses tempos em que internet, cinema e a televisão — e mesmo muita matéria impressa — estão cada vez mais primitivos: futebol; brigas de torcida; incêndios de ônibus à menor contrariedade; “Big Brother”; corridas de automóvel; dragões; alquimia; homens-aranha; “Conan, o bárbaro”; vampiros; mortos-vivos mordedores; bonecos e animais conversando, em filmes para adultos; sexo quase explícito a qualquer hora do dia na televisão; fio dental a um passo de se tornar também frontal; espadas mágicas, esquartejamentos detalhados, sadismo prolongado, prestígio da impunidade e tudo o que o leitor já viu nos filmes atuais.
Mesmo fora do Brasil, a ignorância também avança como um trator. “Já não se fabricam chefes de estado como antigamente”. George Bush II não foi um modelo de lucidez e veracidade. Um presidente francês disfarçava-se de “motoqueiro” para visitar a namorada, como se isso fosse passar despercebido dos repórteres. Artistas de cinema, em vez de aprenderem o ofício em academias de arte dramática frequentam academias de musculação  para exibir os músculos e não o talento. Jogadores de futebol tornam-se ídolos universais, como se o domínio da pelota significasse o cume da realização humana.
E fiquemos por aqui, antes que chovam as pedras.

(21-03-2014)

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