quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sugestão legislativa justa, mas polêmica.


Quando magistrado em atividade, no Estado de S. Paulo, com alguma frequência, sentia uma difusa sensação de que a nossa legislação, principalmente a processual, era um empecilho para qualquer juiz preocupado com a “justiça do caso concreto”, individual. Não havia, me parecia, espaço para exceções justificadas pelas circunstâncias. E, para ser franco havia momentos, em que me parecia “que estava tudo errado”, considerando o conjunto da legislação.

Às vezes a lei me parecia rígida demais. Outras vezes “vaga”, ou frouxa, quando deveria ser mais firme. Não havia, a meu ver, uma convivência confiável entre lei, bom senso, praticidade e moral. Sei que toda justiça, em todos os países, é relativa, porque fixada com normas gerais, rígidas, incapazes de conciliar a inerente generalidade de suas imposições com a infinita variedade do comportamento humano. Não só o comportamento, mas sua motivação.

No Direito Penal, por exemplo, com que trabalhei apenas no início da magistratura de carreira, sempre estranhei o fato da legislação “tabelar” em excesso, minuciosamente, o comportamento do acusado no momento do crime — com agravantes e atenuantes — e dar valor zero ao passado do réu e da vítima. Quase santos, de longa e impecável vida anterior, e pomposos marginais — que conseguiram, utilizando brechas legais, escapar de condenações — são julgados como se fossem iguais. Segundo a lei penal, nada disso importa. O que importa, tecnicamente, é a situação, rigidamente tabelada, no momento do crime, ou sua tentativa.  

Não sei se esse sentimento está presente, hoje, em parcela significativa dos chamados “operadores do direito”. Essa palavra, “operadores”, por sinal, faz lembrar — e não por mero acaso — a imagem de cirurgiões usando avental, máscara e luvas de borracha remexendo as entranhas dos “pacientes”— os inquietos demandantes —  que, deitados numa mesa, tórax e abdomes abertos, conscientes mas não totalmente anestesiados, não sabem se vão sair vivos ou mortos, presos ou soltos, mais pobres ou mais ricos da arriscada “operação judicial”.

Isso porque suas entranhas estão sendo revolvidas, pinçadas ou cortadas conforme os opostos interesses dos “cirurgiões-bacharéis” que procuram, como adversários, apenas aquilo que favoreça o lado que defendem.

Tais “cirurgiões” são, nessa atividade, bastante perspicazes na escolha do material. Quem sabe, daqui a duzentos anos, ambas as partes pinçarão tudo o que interessa à verdade, apenas a verdade, como “cientistas dos conflitos humanos”. E ganhando bem, espero, merecidamente, como homens de uma ciência toda particular, porque inexata, denominada Ciência do Direito. Concebida, idealmente, para a prevalência do justo, não do mero interesse unilateral. Mas esqueçamos a utopia e prossigamos com a metáfora da realidade presente.

 Terminado o exame das “vísceras”, os “cirurgiões”, advogados e promotores — quando a causa é penal —, anotam suas observações, costuram as bordas da longa incisão e escrevem suas conclusões — nunca coincidentes...  — ao “cirurgião-chefe”, o juiz, que tenta formar uma imagem, a mais verdadeira possível, da origem do problema e da  culpa de quem o criou.

O só fato do conhecimento da verdade ser, para o juiz, “de segunda mão”— porque ele depende do “ouvir dizer” de profissionais interessados em mostrar apenas o que a eles interessa — já aconselha os jurisdicionados a desculpar a eventual injustiça que sofreram quando, na primeira ou segunda instâncias, a prova dos autos ou a legislação é dúbia. Quando isso acontece, resta o recurso processual, um santo e digno remédio quando usado de boa-fé, pelo menos na área cível. Quando, porém, essa “medicina” recursal é usada de má-fé — só para retardar ou confundir —, ela equivale a remédio com prazo de validade vencido. Veneno para a parte contrária e enxaqueca crônica para milhares de outros recorrentes que, possíveis vítimas de uma má decisão, aguardam, por anos, na “fila”, o julgamento de seus recursos. A atual queixa contra os recursos protelatórios é por serem protelatórios, não por serem recursos.

Em toda demanda cível que não seja estritamente sobre o direito, teórica, a verdade real é muito mais do conhecimento das partes do que do juiz. Isso, claro, porque quase sempre autor e réu — “testemunhas presenciais” autênticas — contaram a seus advogados o que realmente aconteceu. Informações de primeira linha. O juiz, ao contrário, assemelha-se ao turista que acabou de chegar a um país desconhecido e é abordado na rua por dois cidadãos que pedem sua opinião sobre uma discordância confusa, além de explicada de modo truncado e tendencioso. Não sendo Deus, com o dom da ubiquidade, o juiz depende de informações de idoneidade desconhecida. Vigente, em nosso direito, o direito (das partes) de mentir, é esperável que esse direito aumente o percentual de erros nas decisões. Nesse ponto, o direito americano leva ligeira vantagem sobre o brasileiro na utilização da mão sobre a bíblia, prática que aqui ficaria desmoralizada.

Para contrabalançar a falta de conhecimento presencial dos fatos, por parte do juiz, existe no direito o chamado “contraditório”, uma grande invenção da humanidade. Quando há igualdade de forças — isto é, de igual competência técnica e diligência dos procuradores — a verdade real chega, com grande frequência, a coincidir com a verdade legal. Mas acidentes de percurso, embora raros, podem ocorrer, distorcendo o resultado final de busca do justo. Um deles, talvez o mais grave, seja a perda de um prazo, sem culpa nenhuma da “parte”, propriamente dita, o demandante. Às vezes com culpa até compreensível de seu advogado como demonstrarei.

As explicações técnicas que dou a seguir são destinadas aos leitores em geral, não aos advogados da área cível, que conhecem o assunto até mais do que eu. Parlamentares, economistas, industriais, comerciantes e estudantes podem se interessar pelo problema e por isso tento ser o mais claro possível.

Friso, neste artigo, que minha preocupação maior é com o cliente vitimado por um equívoco não dele, mas de seu patrono, com resultados talvez devastadores, impossíveis de sanar nem com recursos processuais, mandados de segurança ou ação rescisória. Um cidadão pode perder todo o seu patrimônio por um mero engano — talvez compreensível — não dele, mas de outra pessoa, na consulta de uma folha de calendário.

Já ouvi de um grande jurista a afirmação de que os prazos processuais são “a única coisa certa e respeitada em nossa justiça”. De pleno acordo. Seria o caos se os litigantes não tivessem prazos intimidadores para manifestação nos autos. Ainda mais no caso brasileiro, em que as pessoas costumam deixar para o último dia o cumprimento de suas obrigações.

A diferença entre a perda de um prazo processual — nos casos que menciono a seguir —, e um prazo qualquer, não judicial, é que neste último o “distraído” paga apenas uma multa, Perde alguma quantia, mas não perde todo o seu direito. Paga uma multa, por exemplo, de IPTU, mas não perde o imóvel. Alguma coisa lhe resta. O castigo legal pelo engano na contagem de um dia de prazo processual é aberrantemente desproporcional à falta cometida por seu procurador, porque é insanável. Equivale ao fuzilamento de um soldado porque não se levantou logo da cama, após o toque da corneta.

Explico, agora, porque fui motivado para tocar nesse assunto.

 Durante alguns anos fui titular de uma Vara Cível na cidade de São Paulo. Nessa condição, duas ou três vezes, em média, por semana, recebia advogados que compareciam à minha presença com pedidos de sustação de protesto de título. Ora cheques, ora notas promissórias ou outros títulos de crédito. Alegavam que a quantia mencionada no título, , não era mais devida, total ou parcialmente, conforme detalhes explicados na petição.

Como todos, da área, sabem, a lei processual autoriza o juiz, nesses casos de urgência, a deferir — sem antes ouvir a parte contrária, o “credor” —, uma “medida cautelar de sustação do protesto” de um título de crédito, “mediante caução”, ou garantia, da quantia mencionada no papel. Isso porque um título protestado pode representar um abalo de crédito de enormes consequências. Por exemplo, uma empresa pode ser impedida de participar de uma licitação envolvendo lances milionários porque tem um título protestado, talvez indevidamente.

Como o devedor do título talvez tenha razão no que escreve, porque o suposto credor pode estar abusando da situação de ter ainda em suas mãos o título — não obstante a quantia não mais ser devida —, a lei permite ao juiz que conceda a suspensão do protesto do título desde que o suposto devedor ingresse, no prazo de 30 dias, com a chamada “ação principal”, provando detalhadamente a nulidade do título em discussão. Nulidade, ou porque a assinatura é falsa, ou por outro motivo juridicamente relevante.

Essa “caução”, exigida no despacho do juiz, pode ser com dinheiro ou com imóvel, por exemplo. Obtida a sustação, o suposto devedor tem a obrigação legal de entrar, como disse, com a “ação principal” de nulidade do título, ou outra pertinente ao caso. Se, decorridos os 30 dias o suposto devedor não ingressa com a ação principal, a medida liminar é revogada e o título é protestado. Mesmo quando o suposto devedor fez a caução com dinheiro — um forte indício de que não estava mentindo. No entanto, com alguma regularidade, o “devedor” obtinha a sustação mas se atrasava, em um dia, na apresentação da “ação principal”.

Por que ocorria esse atraso? Porque o advogado do devedor confundia “30 dias” com “um mês”. Se a sustação, é deferida em um mês de 30 dias — por exemplo, no dia 23-9-2013 —, o trigésimo dia do prazo ocorrerá no dia 23 de outubro. Tudo certo. “De 23 a 23”, prazo fácil de memorizar. Se a “ação principal” for apresentada nesse dia 23, a medida cautelar continua em vigor.

Se, porém, a medida cautelar é apresentada no dia 23 de outubro —, que tem 31 dias, do mesmo ano —, o prazo legal terminará no dia 22 de novembro. Ajuizada a ação principal no dia seguinte, 23, ela está fora do prazo, por um dia, e o título será protestado, impedindo o concorrente da licitação — no exemplo mencionado.

Em resumo: sem culpa alguma do suposto “devedor”, este pode sofrer irreparável prejuízo por “culpa individual alheia”, a do próprio advogado, que pode até ser um dedicado profissional, mas calculou um prazo sem lembrar que os meses não têm extensão igual.

Sofrido o protesto, que providência pode tomar o cliente para reparação de seu dano por não poder participar da licitação? Processar o advogado. Solução pífia, não só pela longa demora e complexidade da cobrança — “qual a certeza de que ele teria vencido a licitação?”, diria o advogado — como também porque o patrimônio do causídico pode ser pequeno, incapaz de cobrir o prejuízo.

A perda do direito pelo engano de um dia na contagem de um prazo, que ocorria de vez em quando, sempre me impressionou pelo rigor excessivo. Um advogado pode perder todo o seu patrimônio — se o cliente decidir processá-lo — e, principalmente, corre o risco de ser rotulado como “incompetente” pelo indignado ex-cliente, que “espalhará” o prejuízo que sofreu. E o advogado depende muito de sua reputação profissional.

Vejamos outro exemplo, desta vez com o atraso de um dia em uma apelação com alta probabilidade de reforma da sentença, tendo em vista a extrema complexidade do processo. Apresentada a apelação com um dia de atraso, a decisão, mesmo errada, transita em julgado, uma espécie de “prego no caixão” de um cliente enterrado vivo. O trânsito em julgado transforma o “preto em branco”, ou vice-versa. No caso de perda do prazo é desastre insanável porque a decisão não pode ser modificada nem por ação rescisória — para os leigos, a ação que possibilita modificar uma decisão da qual não caiba mais recurso algum, desde que preenchidos vários requisitos, inclusive o prazo de dois anos, contado da data do trânsito em julgado da decisão.

A lei processual não autoriza a utilização da ação rescisória fundada no argumento de que o advogado “enganou-se” na contagem de um prazo.

 Pessoas de mentalidade mais rígida — e que nunca sofreram, na carne situação parecida... — certamente argumentarão que a nossa justiça “já é morosa e por isso não teria cabimento permitir mais um “relaxamento” na nossa já lerda justiça”. Dirão que “a falha do advogado deve ser punida, não perdoada. Assim ele prestará mais atenção, futuramente, no calendário. Se adotada a modificação sugerida, atrasos ainda maiores acontecerão e serão também perdoados”.

Contra tais severos argumentos caberia dizer que a lei seria expressa no sentido de que a tolerância legal seria de um dia  apenas, uma gota d’água em ações que podem durar muitos anos, ou décadas. E lembraria, de novo, que quem mais sofre o prejuízo, pelo atraso de um dia, não é o advogado distraído, mas a parte, que pagará pesado por culpa que não é a sua. E processar o advogado, pedindo indenização, será, como já afirmado, aumentar ainda mais o próprio prejuízo e desgaste emocional.

Contra o argumento de que essa nova lei estimularia o descuido dos advogados, o legislador poderia — e deveria — instituir uma multa de tantos salários mínimos, numa escala de “x’ a “y” ,devida pelo advogado retardatário —, não pelo cliente —, a ser recolhida, por exemplo, em vinte e quatro  ou quarenta e oito horas — conforme opção do legislador —, ressalvado ao cliente prejudicado fazer tal depósito, sem o qual o recurso seria considerado fora do prazo. Obviamente, esses detalhes seriam discutidos com ajuda da OAB.

É preciso também levar em conta que a vida, nas grandes cidades, está cada vez mais complicada, com ocorrências sem sempre previsíveis. Greves, passeatas, quebra-quebras, acidentes ou bloqueios de trânsito, vírus no computador, inundações, bandidagens, interrupções de energia elétrica, pneu furado justamente no último dia do recurso, etc., justificam a tolerância de um dia nos casos referidos. Nem sempre tais empecilhos podem ser provados pelo advogado, justificando o atraso. Falhas no computador do advogado, ou dele mesmo,  não interessam à Justiça. Um clique errado pode causar uma grande demora na digitação de uma petição.

Estou bem consciente de que a presente proposta não será bem vista, se examinada em rápido passar de olhos. Dirão que não é tão comum a perda de um prazo recursal, ou de atraso do ajuizamento da medida cautelar e o prejuízo, mesmo imenso, de um ou outro, são “coisas da vida”. Quando alheia.

A opinião de cada um variará conforme sua experiência pessoal. Se nunca teve o azar de seu escritório perder uma causa por erro de contagem, será contra a ideia. Se já sofreu tal experiência, será a favor.

Aguardemos.

(5-11-2003)

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