sábado, 26 de junho de 2010

O CS da ONU tornou-se uma Câmara de Comércio

O título não é uma frase de efeito. É a dura realidade de um mundo conturbado, liderado por “crianças” grandes, já maduras ou velhas. “Crianças” assustadas e ao mesmo tempo ferozes, astutas — algumas perigosamente inteligentes — portadoras de nutrido coquetel de taras morais: egoísmo irresponsável, inveja, cobiça desenfreada, insana vaidade e sincero entusiasmo pela mentira — no geral mais lucrativa que a verdade. No plano moral, não há muita diferença entre o homem das cavernas e um grande número de governantes, em todos os tempos. Os tais “líderes”, no fundo infantis e imprevidentes, levam seus povos à felicidade ou à desgraça, com predomínio desta última. Às vezes, um governante medíocre, terra-a-terra, pouco “criativo” revela-se mais útil a seu povo que virulentos “patriotas” — Hitler, por exemplo, e alguns outros que não me atrevo a mencionar, temendo vinganças secretas —, cheios de “projetos grandiosos” em favor de seu amado país. Pelo menos, o apagado líder não atrapalha o crescimento normal da sua comunidade e deixou os países vizinhos viverem em paz.

Os indivíduos comuns, governados, são mais limitados pelas normas morais; medo da polícia, ou do fuxico da vizinhança. Preocupam-se em cumprir a palavra empenhada. Quando, porém, transformados em governo, reescrevem o código moral, adotando padrões de nível mais “maleável”. Justificam-se: — “É um novo patamar... Vistas as coisas do alto, com longa visão, é preciso sacrificar muitas “coisinhas” antes consideradas corretas”. Sobem no status mas descem no caráter. Pressionados pela necessidade — ou mera conveniência econômica — de proteger seus súditos contra o egoísmo externo, passam também a mentir, tramar conchavos, contrapondo astúcia contra astúcia. Justificam-se: — “Se eu não defendo, mesmo mentindo e sofismando, meu país contra essa cambada, arrogante e mentirosa, de inimigos ou falsos amigos externos, ninguém mais o fará. Nem mesmo Deus, no Seu olímpico nojo por intrigas internacionais, moverá uma palha para salvar os povos mais fracos. Talvez porque veja, no sofrimento, a forma mais segura de purificação da alma, seu único interesse no bicho homem. Se Ele não protegeu os judeus, no Holocausto, certamente não protegerá agora os iranianos do massacre que se avizinha, planejado pelos descendentes dos sobreviventes do mesmo Holocausto. Apostemos, pois — sobretudo lucremos! — nos prováveis vencedores. Ninguém, jamais, ganhou dinheiro apostando no mais fraco”.

Exagero, leitor, o que aconteceu recentemente na área internacional? Penso que não. Seja qual for sua “simpatia” no conflito — não bélico, por enquanto — entre o consórcio Israel-EUA e o Irã é inegável a realidade de que o Conselho de Segurança tornou-se uma espécie de Câmara de Comércio, em que todos os votos têm um preço. Preço, mesmo, não falo em sentido figurado. “Money, business”.

Obtido um razoável acordo — mérito para Turquia e Brasil — em que o Irã concordou com a proposta americana, de vários meses atrás, de entregar, sob responsabilidade de país europeu, boa parte de seu combustível nuclear, para enriquecimento a 20%, com finalidade claramente não-militar — para fazer a bomba o enriquecimento deve chegar a 90% —, os EUA providenciaram, de imediato — sem dar tempo ao Irã de discutir, sequer pensar, as novas exigências —, uma reunião do Conselho de Segurança para adoção de novas sanções. Quer, a “dupla musculosa EUA-Israel” — embora não diga isso de modo explícito —, que o Irã paralise, totalmente, qualquer avanço no domínio da tecnologia nuclear, seja para fins pacíficos, seja para fins militares. Alega temer que o atual presidente iraniano possa, daqui a meses, ou anos, fabricar armas nucleares, privilégio que, no entender da “dupla danada”, só pode e deve pertencer a alguns poucos “países superiores”, entre eles os dois referidos, já tremendamente poderosos em armas convencionais e atômicas. A “dupla” alega, para justificar a desigualdade de tratamento, que o atual governo iraniano é ditatorial e primitivo, a ponto de permitir o açoite de ladrões em praça pública, o apedrejamento de adúlteras e outras práticas realmente primitivas, mas que ainda fazem parte da ancestral — e até mesmo religiosa — tradição islâmica. A crítica a tais costumes é procedente, mas é preciso considerar que trata-se de uma cultura que não desaparece da noite para o dia, embora precise desaparecer.

Como este artigo não visa discutir as origens e variantes do conflito Israel- palestinos — o Irã é mera metástase do câncer político nunca extirpado —, vamos nos limitar à comprovação de que o Conselho de Segurança vem se tornando uma Câmara de Comércio.

Todos os que acompanham as notícias internacionais sobre a “ameaça iraniana” estão lembradas que China e Rússia mostravam-se resistentes à aplicação de novas sanções contra o Irã. De repente, às vésperas da votação das novas sanções, a China mudou de posição. Por que? Esclarece-nos a mídia mais corajosa que esse abrupto salto ocorreu porque o governo israelense “sinalizou” à China que pretende atacar e destruir as instalações iranianas utilizadas na extração do petróleo. Com tal perspectiva, a China perderia, por longo tempo, essa fonte do precioso óleo. Por isso, Pequim achou mais prudente aprovar as novas sanções do CS e manter o fornecimento de petróleo, que não será afetado pelas sanções. “Just business”, nada contra o Irã”. Está explicada a súbita mudança de posição chinesa.

Vejamos, agora, a explicação russa. Todos sabem que a Rússia fechou contrato com o Irã para venda de mísseis terra-ar S-300. Faltava apenas entregar os tais mísseis, que funcionam apenas como meio de defesa, destinados a derrubar aviões e foguetes atacando o país. O governo russo, mesmo após a decisão do CS de criar novas sanções, deu declarações de que tais mísseis, terra-ar, seriam entregues, porque não poderiam ser classificados como “armas de ataque” e os contratos precisam ser cumpridos. Seguiu-se uma conversinha secreta e Putin mudou de posição, dizendo que os foguetes não mais seriam entregues. Desconheço se houve algum pagamento adiantado.

Por que o governo Putin decidiu mudar de idéia? Porque se a Rússia entregasse os referidos foguetes de defesa ao Irã, a França de Sarkozy — discretamente pró Israel — deixaria de vender à Rússia algo que esta muito deseja para combater os rebeldes chechenos: navios anfíbios da classe “Mistral”, que podem chegar bem perto da praia, transportar, cada navio, 16 helicópteros de ataque, 4 lanchas de desembarque, 70 veículos de combate, 13 tanques de guerra e 450 soldados. Tais navios-anfíbios dispõem até de 69 leitos de hospital. A venda de um navio “Mistral’ foi combinada e estava em estudo a venda de mais quatro. Face à perspectiva de perder o negócio com os franceses, caso vetasse as sanções, ou não as cumprisse, Putin mudou de opinião. “Sorry, business..”, deve ter dito aos iranianos, que ficarão mais desprotegidos de ataques aéreos contra suas instalações mais vitais. Prevendo como inevitável um apoio americano a um fato consumado — Israel, cerca de trinta anos atrás, bombardeou o reator nuclear Osirak, de Saddam Hussein —, é bem possível que repita a dose. Desta vez contra o Irã, bloqueando qualquer desenvolvimento nuclear desse país, seja para fins pacíficos ou militares.

O Brasil, corajosamente, manteve sua oposição às novas sanções, mesmo perdendo dinheiro nisso. Insiste na existência de um princípio que nunca poderá ser escondido debaixo do tapete — provavelmente já cheio de calombos —, da sala de reunião do CS: se todas as nações têm direitos iguais, não há porque bloquear o direito do Irã desenvolver tecnologia nuclear, uma vez que os cinco membros permanentes do CS já dispõem de armas atômicas e não se opõem à existência de tais arsenais na Índia, no Paquistão e em Israel. Este é um arqui-inimigo do Irã e nem mesmo se deu ao trabalho de aderir ao Tratado de Não Proliferação Nuclear, podendo, “consequentemente”, “juridicamente” fabricá-las à vontade, livre de inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica.

O governo brasileiro promete vender álcool a Teerã, e também comida, itens não incluídos explicitamente no bloqueio. Todavia, não conseguirá vender o álcool, porque a Única, entidade representante dos produtores de etanol, sabe que se venderem álcool ao Irã sofrerão represálias tarifárias do governo americano. Assim não venderão “uma gota”, como já disse um representante da Única. Os usineiros dirão: “Nada contra os iranianos, “just business”. Mesmo as empresas brasileiras interessadas em vender alimentos aos iranianos acabarão cansados de nadar contra a corrente financeira porque os negócios de exportação são realizados mediante transações bancárias e a “dupla poderosa” já adiantou que os bancos que mantiverem transações com o Irã estão na lista negra.”Just business...”, dirão os usineiros.

Nada a criticar, claro, o fato de empresas privadas procurarem sempre o caminho comercialmente mais fácil. Nem com o fato de as Câmaras de Comércio serem frequentadas para a realização de negócios. Foram concebidas com essa finalidade. O que está errado é ver um órgão mundial poderosíssimo — criado com outra finalidade, supostamente mais nobre, o Conselho de Segurança das Nações Unidas — fazendo “concorrência” às verdadeiras Câmaras de Comércio. Cada coisa em seu lugar. O Conselho de Segurança deveria, idealmente, encarar os atritos mundiais, na iminência de conflitos armados, com olhos preponderantemente morais, analisando não só os interesses econômicos de seus membros, mas também suas opiniões éticas, evitando ou diminuindo, tanto quanto possível, eventuais injustiças e abusos. Toda “sanção” tem um componente ético. Não é apenas resultado de um resultado contábil, econômico.

Quando o CS percebesse, claramente, que o voto fora manifestado apenas em troca de uma vantagem econômica para o país votante — como tem sido, frequentemente o caso — esse voto seria inválido ou, pelo menos desmoralizado pela opinião pública. O chamado “voto de cabresto econômico” precisa desaparecer nas decisões do CS. As fundamentações de voto, de cada membro, deveriam ser obrigatoriamente publicadas e amplamente difundidas para que a opinião pública internacional e mesmo interna de cada país, conhecesse o grau de honestidade intelectual de seus representantes na ONU e dos respectivos chefes de estado.

Imagine, o leitor, como seriam, hoje, sinceramente, as fundamentações de voto. O representante da China diria: “Senhor Secretário Geral: na verdade, sou contra as novas sanções ao Irã, mas a China precisa do petróleo iraniano. Como há alta probabilidade, quase garantia de um bombardeio, israelense ou americano, das suas instalações petrolíferas desse importante fornecedor — e nesse caso a China ficaria muito tempo sem o óleo —, vejo-me obrigado, por motivos práticos, a votar a favor de novas sanções. É meu voto, Senhor Secretário”.

Quando do voto do representante russo, ele diria o seguinte: “Senhor Secretário|: também sou, como a China, contrário a novas sanções, que só aumentarão o tormento da população iraniana e, indiretamente, da de Gaza, privada de quase tudo. Entretanto, meu país já contava com a aquisição de navios-anfíbios, fabricados na França, que serão muito úteis para combater os revoltosos chechenos. E não temos outro fornecedor em vista. Ocorre que se eu não apoiar as novas sanções, a França de Sarkozy deixará o dito pelo não dito, não nos vende mais os navios, dificultando nossa luta contra o terror checheno. Pensando nos navios franceses, voto a favor das novas sanções. Acrescento que a Rússia se comprometeu a vender ao Irã foguetes terra-ar, para defesa contra aviões e mísseis que ataquem aquele país. Vou tentar cumprir o combinado mas se a França exigir que eu descumpra o acordo, eu descumpro, porque os navios-anfíbios são mais importantes para a Rússia do que eventuais justiças ou injustiças contra um país como o Irã, muito antipatizado”.

Alguns outros países, que apoiaram as sanções, poderiam, certamente, dizer coisas semelhantes, invocando transações pendentes.

Alguém dirá que cabe à Corte Internacional de Justiça e não ao CS a missão de analisar juridicamente as pendências. Ocorre que, conforme os estatutos atuais do referido Tribunal, somente Estados — e os palestinos não constituem um Estado — podem demandar contra a expulsão, sem indenização, de uma área que ocupavam há quase dois milênios. E a raiz da animosidade entre Israel e Irã está na questão palestina, sem chance de ser decidida formalmente por um Tribunal. Daí a necessidade de o CS decidir sobre sanções levando em conta critérios morais de justiça ou injustiça.

Não tenho reais preconceitos contra qualquer raça. Considero-as como mais ou menos iguais em termos de capacidade natural, inata, e tendências de caráter. Com igual variação de caracteres morais individuais dentro de cada raça. Há indivíduos excelentes, autênticas jóias humanas em todos os povos. E também astutos gângsteres travestidos de políticos. O problema está na sorte ou azar na escolha dos “chefes” e nos traumatismos sofridos e não esquecidos de cada povo, no passado próximo e/ou remoto.

Não sou admirador de Ahmadinejad — que fala muito o que não devia e provavelmente morrerá pela língua —, mas não posso ignorar que o Irã foi o único país que arregaçou as mangas para defender, com louca coragem, os palestinos, atormentados e expulsos sem terem nenhum culpa por uma injustiça romana, imperial, cometida dois milênios atrás.

Alguns leitores poderão considerar ingênuas as considerações feitas neste artigo. “Ingênuas”, considerando o mundo real, de hoje. Mas a civilização não cresceu buscando efetivar a “ingenuidade”? Houve tempo em que discutia-se se as mulheres tinham “alma”. Se a tinham, não era garantido que tivessem juízo suficiente para escolher candidatos em eleições. Não podiam votar. Serem juízas? Nem pensar! Índios também não eram considerados seres humanos plenos. E por aí vai.

Cedo ou tarde o Conselho de Segurança, visando preservar sua missão teórica — cada vez mais criticada na prática—, terá que subir um degrau acima, não mais agindo como Câmaras de Comércio. Conhecedores do Direito Internacional existem às centenas, mas parecem temer expor, com total liberdade, suas impressões negativas. Não querem arriscar suas carreiras acadêmicas.

(14-6-2010)

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