domingo, 20 de dezembro de 2009

Hugo Chávez e o MERCOSUL

Existem três modos de se avaliar um objeto ou situação: com visão microscópica, macroscópica (seu oposto) e, finalmente, a média das duas, a “meia-distância”. Quem precisa de óculos para longe, perto, e usando o computador sabe do que estou falando. Difícil é identificar qual a lente mental utilizada pelo governo federal quando pressionou sua maioria a votar pela inclusão da Venezuela no MERCOSUL. Espera-se que a visão econômica, utilitária, tenha tido mais peso que as simpatias ideológicas.

A opinião quase unânime dos analistas internacionais independentes é no sentido de que Hugo Chávez tem inegável vocação para atitudes ditatoriais. Exagera nas privatizações; amordaça a mídia; amolda o judiciário conforme sua vontade; incentiva um demagógico “clima de guerra” contra os Estados Unidos; agride sem meias palavras o presidente colombiano e até, recentemente, mandou prender magistrada que se atreveu a decidir contra sua opinião. Isso ocorreu na última quinta-feira, 15-12-09 quando determinou a detenção da juíza Maria Lourdes Afiuni. Segundo um jornal confiável ela foi presa após libertar o banqueiro Eligio Sedeño, acusado de fraude, mas preso sem julgamento desde 2007. Goste-se ou não de banqueiros eles também têm seus direitos quando processados. Note-se que seu processo continuará.

Além de agir com o desembaraço de elefante nervoso em loja de cristais, Chávez não mostra competência na área econômica. Ele só ainda não caiu do poder porque seu país teve a felicidade, acidental — não é mérito dele —, de encontrar, no subsolo, grandes reservas de petróleo, uma forma de energia que ainda não foi possível substituir, apesar de seu componente poluidor.

Não obstante a indústria e o comércio da Venezuela estejam em franca decadência, a exportação do valioso óleo ainda permite ao alvoroçado líder venezuelano fazer extravagâncias, distribuindo dinheiro a países cujos governantes afinam com seus ideais “libertadores” e permitindo a seus concidadãos abastecer os carros com gasolina quase de graça. Agrada as massas, também, com discursos frequentes, alimentando o ressentimento dos pobres contra os mais afortunados e transmitindo a idéia de que o país está na iminência de invasão americana. Algo extremamente improvável, tão cedo, porque Barack Obama não seria louco de inventar uma terceira guerra — agora na América do Sul —, quando mal dá conta das duas hoje existentes.

Chávez imagina-se um Simón Bolívar reencarnado. O grande e visionário estadista, seu modelo, falecido em 1830, deve estar revirando-se como um pião dentro do túmulo — caso não esteja embalsamado —, inconformado com a vinculação de seu nome ao agitado ex-paraquedista que parece deliciar-se chocando audiências com frases de efeito. Todos lembram do que aconteceu na ONU, atribuindo a George W. Bush o cheiro de enxofre e, na Europa, quando o rei espanhol, perdendo a paciência, perguntou a Chávez “Por que não te calas?”.

Nada contra um presidente ser de esquerda ou de direita. Se a população assim deseja, que o seja. As demais nações têm que respeitar a vontade interna de cada país. Mas os modos também contam. François Mitterrand foi um presidente de esquerda que conseguiu ser respeitado dentro e fora das fronteiras. Sobretudo, não exagerava na verbalização daquilo que considerava o melhor. Mantinha a compostura, por alguns encarada como mero “requinte diplomático” mas prática indispensável no âmbito nacional e internacional. Não hostilizava os empreendedores. Parecia estar convencido que qualquer nação, à semelhança de um gigantesco organismo biológico, não resiste por muito tempo a contínuas e violentas mudanças. Chávez, porém, prefere chocar, e com pouca classe.

A realeza francesa, até Luís XV, tratava os camponeses, trabalhadores da cidade e a pequena burguesia com desprezo, o que era injusto e mau. Mas a “virada sangrenta”, com os excessos bruscos da Revolução Francesa e o Terror, só alimentou a sede da guilhotina, que acabou devorando os próprios filhos da revolução. Chávez não pretende chegar a tanto, a guilhotina, mas cedo ou tarde seus atos abusivos — na forma e na essência — terminarão cansando os próprios concidadãos das classes menos favorecidas, revoltadas com a escassez de produtos nos supermercados. Não podendo alimentar-se à base de gasolina e pregação política, exigirão mais trabalho, ordem e prateleiras cheias nos supermercados. E foi pensando nesse mercado comprador, nesse “vazio” produtivo atual da Venezuela de Chávez que o governo brasileiro optou pela admissão daquele país como integrante do MERCOSUL. Mesmo conhecendo seu temperamento difícil. Um parlamentar brasileiro do PT, Mercadante — engraçada a coincidência de nomes — frisou que será o país, Venezuela, que integrará o MERCOSUL, não a discutível pessoa física de seu atual presidente, que pode até não durar muito tempo no poder.

Artigo, bem fundamentado, de Denise Chrispim Marin, jornalista do jornal “O Estado de S. Paulo”, de hoje, 16-12-09, revela-nos que, graças à cordialidade mútua de nosso governo com o governo venezuelano, construtoras brasileiras realizaram obras, naquele país, no montante de US$15 bilhões, além de outros investimentos de grandes companhias privadas. Diz, ainda — certamente com dados colhidos em fonte idônea —, que as exportações brasileiras para a Venezuela, “saltaram de US$608 milhões, em 2003, para US$5,1 bilhões, em 2008. Esse salto, em apenas cinco anos, mostra o quanto foi útil economicamente, para o Brasil, essa política de boa-vizinhança. E o futuro é ainda mais promissor porque a própria incapacidade de Chávez para conduzir a economia de seu país permitirá que nossas fábricas, plantações, renda e emprego possam se expandir ainda mais. Aqui, exportando; lá, se instalando.

Se o governo brasileiro vetasse a entrada da Venezuela no MERCOSUL é bem possível que Chávez, nos seus habituais rompantes, tomasse represálias, restringindo nossas exportações, cancelando contratos com empreiteiras brasileiras e usando todo o conhecido arsenal repressivo que costuma utilizar contra seus adversários políticos. E quem pagaria a conta da “nossa pureza democrática”, vetando a Venezuela? Nossas empresas, operários, executivos e trabalhadores do campo, além das finanças estatais brasileiras, que deixarão de arrecadar. Sob o ângulo econômico, não há dúvida de que seria um mau negócio essa história de vetar aquele país porque, no momento, tem como governante um político mais voltado para a agitação do que para a boa administração do país.

Políticos mais preocupados com a dimensão política do dilema de vetar, ou não, argumentam que Chávez, com voz na entidade, tentará influir no rumo da política sul-americana, principalmente envenenando nossa relação com os EUA. A esse argumento pode-se objetar que uma coisa é ele “tentar” liderar todos os países que integram o MERCOSUL, outra — muito outra — será conseguir tal façanha, nada fácil. A Venezuela, hoje, para o Brasil, não passa de uma ave que fornece ovos de ouro. Nada mais. A figura política, moral — e mesmo física — de Chávez não seduz os brasileiros.

Alguém acredita que as opiniões apresentadas por Chávez nas reuniões do MERCOSUL serão encaradas como verdade emanadas de boca divina? Mesmo os atuais governantes que apóiam Chávez — os presidentes do Equador, da Bolívia e da Argentina, assim o fazem, preponderantemente, por interesse econômico. Não acredito que a Argentina morra de amores por Chávez. Seu apoio é mera gratidão, assim mesmo provisória, por um “Tio Patinhas” que fornece dinheiro fácil. Duvido que o argentino médio, com sua algo sofisticada cultura — impressiona o número de livrarias naquele país — e orgulhosa auto-estima, apóie, intimamente, sinceramente, os modos e arroubos chavistas exagerados. Evo Morales e Rafael Correa podem, hoje, sentir um sincero sentimento de gratidão pelo apoio político e financeiro de Chávez, mas se este começar a se intrometer demais nos dois países, dando ordens, é absolutamente certo que os dois presidentes darão o seu “basta!”. Isso porque, não o fazendo, agindo como meros subordinados políticos, ficarão desmoralizados frente a seus próprios concidadãos. Na guerra íntima entre a gratidão e a auto-estima, podem apostar que esta última vence de três a zero.

O editorial de importante jornal brasileiro observou, com acerto, que nenhuma bola de cristal nos garante que Chávez deixará tão cedo o poder. E para agravar o perigo da sua permanência concorre o fato de os países do MERCOSUL possuírem o direito de veto. Mas assim como ele terá esse direito, os demais países da união aduaneira poderão vetar aquelas suas iniciativas apenas interessadas na agitação política.

Quando encerrava este “ensaio-crônica” deparei-me, casualmente, com um artigo — “Imperialismo cria o seu universal soldier” — de José Arbex Jr, na revista “Caros Amigos”, nº 153. Arbex Jr. é um jornalista de esquerda muito bem informado e de estilo direto e vigoroso. Nesse texto, ele sugere, ou mesmo afirma, que Manuel Zelaya não foi tirado à força do poder porque pretendia “eternizar-se no poder”, e sim porque associou Honduras à Alba (Aliança Bolivariana das Américas) e ao Petrocaribe, entidades vinculadas a Chávez. E acrescenta que Zelaya cometeu a imprudência de anunciar que “transformaria a base militar estadunidense de Soto Cano (situada a 30 km de Tegucigalpa) em aeroporto civil, fazendo isso com financiamento venezuelano”. Segundo Arbex Jr. “a base de Soto Cano era utilizada pela CIA , ao longo dos anos 80, como centro de operações contra o governo sandinista da vizinha Nicarágua e para treinar soldados e oficiais que lutavam na guerra civil de El Salvador”. Honduras, na época, era considerada como um “porta-aviões não naufragável dos Estados Unidos”.

Justificando, ainda, os receios de Chávez, no seu temor de uma invasão americana — ou, pelo menos, a insistência “imperialista” dos EUA — Arbex Jr. menciona que o presidente Rafael Correa, do Equador, mandou fechar a base militar americana de Manta, na costa do Pacífico equatoriana, o que contribuiu para a queda de Zelaya e a assinatura do acordo dos EUA com a Colômbia, autorizando a instalação de sete bases neste último país, com o falso pretexto de combate ao narcotráfico. Finalmente, o jornalista sugere uma conexão entre a descoberta brasileira do pré-sal e a retomada das atividades da Quarta Frota dos EUA, atuando na costa atlântica dos países sul-americanos, notadamente no Brasil.

Não obstante os “indícios” ou “coincidências” acima, continuo pensando, talvez por ingenuidade — só o tempo dirá se Arbex Jr. está certo — que Barack Obama é um homem mentalmente honesto quando diz pretender mudar a política externa de seu país. Não é fácil a um só homem, mesmo no cargo de presidente, mudar antigas, complexas e viciadas engrenagens do poder de um país acostumado a moldar o mundo conforme a orientação que presume ser a melhor.

Chávez, por sua vez, também não é um modelo de líder socialista. Comporta-se mais como um demagogo desafiador, interessado em manter-se no poder. Se o socialismo implantado por Lênin — um intelectual especialmente inteligente e culto —, acabou não dando certo, imagine-se essa causa — difícil porque o homem médio só está interessado na sua pessoa e na sua família — nas mãos de Chávez, com suas evidentes limitações intelectuais. O velho socialismo não tem chance de vingar e permanecer por muito tempo. O regime universal do futuro será, inevitavelmente, uma mescla de capitalismo — no estímulo à livre iniciativa — com o freio socialista, contrabalançando os excessos causados pela ganância, tão própria do ser humano. O capitalismo produz a riqueza mas cabe ao Estado utilizar , com sentido social, boa parte dela.

Somente o futuro dirá, claro, se foi útil ou prejudicial a aceitação da Venezuela, enquanto liderada por Chávez, mas, na área internacional geralmente é mais vantajosa a união do que a desunião. Países permanecem; governos, não.

(16-12-09)

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