Por que algumas mulheres só engordam em determinadas partes?
A senhora alta que
gingava pelo corredor da velha repartição pública era um exemplo ambulante
desse capricho genético: da cintura para baixo, era impressionantemente
volumosa, com curvas bem feitas, mas um tanto gigantescas. Da cintura para
cima, quase diríamos que era magra, ainda que com braços fortes. Digo fortes,
não gordos. Praticamente não havia banhas no hemisfério norte de sua pessoa e
seus dois ovos estrelados peitorais pouco apareciam por baixo da blusa de
verão.
Seu rosto era curtido
pelo sol, com muitas rugas nos cantos dos olhos, os tais “pés-de-galinha” que
certas vaidosas de cabeça oca temem afastar os galos de seu selecionado
galinheiro. Os braços também eram queimados, a sugerir trabalhos ao ar livre.
Se o observador fosse desses maníacos que se deleitam com deduções de contos
policiais, acertaria, com rápida espiada, se dissesse que essa mulher era
lavadeira, bastando olhar para suas mãos avermelhadas.
Apesar do mau trato geral e vestes modestíssimas, essa moringa de carne tinha
na face vestígios de uma beleza nobre e recôndita, só perceptível aos
entendidos. Sua beleza estava impressa na caveira. Pelos ossos da face e formato
do crânio, pode-se adivinhar se a mulher conservará ou não por muitos anos a
beleza da mocidade. O essencial é examinar os ossos, não se compreendendo — em
época de tantas inovações — por que não há ainda concurso de beleza de caveiras
femininas, com legistas e cirurgiões plásticos funcionando como jurados. Carne
e pele são produtos perecíveis, despencam, engelham, enquanto os ossos, com seu
toque de eternidade, conservam a eventual beleza até o juízo final.
Não fosse a total
ausência de vaidade, essa senhora poderia, com algum trato e lipoaspiração,
incendiar muitos corações masculinos. Como, aliás, realmente incendiou
mordentemente — repare, o leitor, o advérbio — consoante se verificará.
A mulher chegava para visitar a irmã, que trabalhava na seção do arquivo no quarto andar. Caminhava lentamente, ao mesmo tempo majestosa e humilde. Aproximava-se do elevador, vindo pelo corredor quase deserto, quando as coisas começaram a acontecer.
Antes que chegasse à porta, um homem de seus trinta anos, servente — e que já a observara em vezes anteriores — mal a viu, rapidamente se antecipou, entrando no elevador e mexendo rapidamente nos botões e alavanca do aparelho. Fingindo impaciência frente a um mecanismo defeituoso, ele disse à mulher que aquele elevador estava com defeito, sendo necessário utilizar o de carga, situado na outra ponta do corredor, normalmente bem mais deserto.
A mulher de nada desconfiou. O que, afinal, funcionava bem em certas repartições? Caminhou, resignada e ondulante — de modo algum fazendo charme — na direção indicada, enquanto ele a seguia logo atrás, com olhares gulosos e avaliativos de quem degusta por antecipação um substancioso pudim.
Entraram a sós no elevador de carga. As duas portas foram fechadas. A externa,
de madeira, e a interna, de ferros trançados.
Ele perguntou a que andar ela queria ir. Informado, apertou o botão de subida.
Para que o leitor melhor visualize a cena, cumpre informar que o improvisado ascensorista era um homem muito feio. Bem mais baixo do que aquela mulher era magro, careca e cabeçudo, com uma boca enorme — seu apelido era “Jacaré”. Tinha olhos protuberantes, com uma permanente expressão de espanto e beiços volumosos, não obstante ser da raça branca.
Quando o elevador estava entre o terceiro e o quarto andares, um dedo masculino tremente apertou certo botão. A máquina parou. E com o elevador parado entre os andares, a porta não abria.
O homem, fingindo surpresa, mas péssimo ator, observou, com um sorriso amarelo:
— Puxa! Que azar! Falta de energia. É, não tem jeito... Vamos ter que esperar uns dez ou quinze minutos...
A mulher, com a desconfiança ancestral da espécie, sentiu que se algo estava errado não era com o elevador, mas com a cara do homem. Aquele sorriso de crocodilo que vê um leitãozinho apetitoso não a enganava.
— Não vou esperar minuto algum! — ela protestou, aproximando-se do painel. Com um enérgico “Dá licença!”, pediu ao homem que se afastasse. E quando ia apertar o botão vermelho de alarme, o homem, tentando sorrir, mas conseguindo, ao máximo, um esgar, segurou seu impulso, sussurrando: “Por favor...”.
O que se seguiu é difícil afirmar com segurança, pois no inquérito instaurado a respeito havia duas versões opostas e, se fosse possível um relato fiel, talvez não houvesse conveniência neste escrito de algumas precauções pudicas. O incontroverso é que, naquele pequeno espaço houve muita ação, mas de intenções não coincidentes. De parte dele, um entusiasmo amoroso, algo canibalesco. Da parte dela, cenas de violência explícita. Com seu treino diário como lavadeira de grandes peças, erguendo pesadas bacias, torcendo cortinas e cobertores, ela adquirira uma força considerável. Indignada, interpretava seu faminto admirador como uma espécie de cobertor escarrado, sujo em todos os sentidos. Por isso, “torceu-o” como pôde, esfregando-o raivosamente contra os ferros da porta pantográfica, como se esta fosse rampa ondulada de um tanque de lavar roupa. O rosto dele ficou escalavrado e suas orelhas quase se despregaram, na tentativa dela de imobilizá-lo, entalando seu coco tarado entre os ferros da porta.
A cabeça passava, mas havia o problema das orelhas grandes, quase resolvido. Nosso Romeu apressado viu as coisas pretas, mas, como era no fundo um amoroso, e não um agressivo, o máximo que conseguiu durante a luta foi dar uma senhora dentada por cima da saia, no gordo traseiro da lavadeira.
Com um “Aiii!” nem um pouco impregnado
de volúpia, ela reuniu novas forças e o arremessou com violência contra a
parede dos fundos, fazendo com que o elevador tremesse de pavor, tal o abalo
sofrido em sua estrutura. Aí, o tarado — ou esfomeado — desistiu, gritando:
“Está bem! Para! Socorro!”.
A mulher se recompôs, ofegando, enquanto ele fazia o elevador subir até o quarto andar. Mal abriu as portas, ele desceu correndo as escadas antes que ela fizesse novo escândalo.
A lavadeira procurou logo um banheiro no próprio andar. Já dentro, olhou-se no espelho e ajeitou o cabelo. Lavou o rosto e o pescoço — onde o tarado depositara um beijo molhado — e tentou examinar o lugar mordido. Mas por mais que se contorcesse, como um cachorro que tenta morder o próprio rabo, ficava difícil ver o ponto exato. Assim, pediu a uma moça que entrava que examinasse a mordida.
Após breve exame, a moça observou que havia uma leve marca de mordida, indagando em voz baixa o que acontecera.
— Foi aquele cachorro!... — berrou a mulher, indignada.
Ocorre que uma das paredes do banheiro público onde estava não chegava até o
teto. Por isso, tais palavras exaltadas voaram como mariposas maldosas para o
banheiro vizinho, usado apenas pelas funcionárias do prédio. E nesse momento
ali se encontrava uma escriturária de imaginação viva, que se assustou
tremendamente com a história da mordida, ouvida parcialmente.
Cautelosa, a funcionária
espiou o corredor e deu uma corridinha até sua sala. Mal entrou, fechou a
porta, discando para o setor de segurança da repartição.
— Alô? Segurança? Aqui é
a Mercedes, do arquivo. Olha, é preciso enviar, urgente, alguém até o quarto
andar porque há um cachorro à solta! Já mordeu gente!
Do outro lado, a
estranheza: — Cachorro! Aqui?!
— Pra você ver que nessa
repartição não falta mais nada...
— Como é o tal cachorro?
— Eu não cheguei a ver...
— Ah, você quer brincar
com a gente...
— Não estou brincando!
Ouvi una conversa, sem querer, quando estava no banheiro. A mulher que foi
mordida, mostrava o ferimento para uma outra. Há marcas de dentes do animal.
— Sim, senhor... A culpa
é do Antônio, que nunca permanece no lugar dele na entrada. Pode ficar
sossegada, que já mando dois seguranças.
Nem bem decorreram cinco minutos, dois guardas armados, munidos de paus e cordas, percorriam o quarto andar e em seguida os andares vizinhos.
O rebuliço foi geral. A própria senhora gorda foi impedida, por segurança, de
sair da sala em que trabalhava a irmã. Mas como o “mordedor” de quatro pernas
não era encontrado e corria a notícia, já ampliada, de que o animal “arrancara
a nádega inteira de uma mulher”, a própria vítima acabou ligando uma coisa com
outra e explicou tudo, o que resultou em hilaridade geral.
Pela descrição do
taradinho, foi possível a sua localização. Ajudou nisso suas orelhas. De
início, tentou negar, mas suas orelhas inchadas o denunciaram. No inquérito,
admitiu que “perdera a cabeça” porque naquele dia estava em jejum e tomara duas
pingas. Além disso, fora abandonado pela mulher há quase um mês. — “Eu estava
meio com fome de sexo... Isso, mais a pinga, desculpe...”
A vítima só compareceu
depois de muita insistência. Quando examinada para a elaboração do laudo
pericial, já não apresentava qualquer marca. A raiva dela já tinha passado. Até
se gabara um pouco com amigas, contando a surra que dera no “tarado”.
O “lipófago”, como passou a ser conhecido, após uma punição disciplinar, foi removido para uma repartição de outra cidade.
Seu superior hierárquico, que quando contava qualquer caso supostamente engraçado a seus subordinados todo mundo guinchava de tanto rir, visando promoção, passou a espalhar que depois do acesso de fome no elevador, o “tarado do elevador” não mais andava desprevenido. Quando estava para cair em tentação, sacava depressa do bolso do paletó um volumoso sanduíche de presunto, logo devorado para salvação de sua alma.
FIM