Cada vez com maior franqueza — com verdades e meias verdades —,
políticos, jornalistas e advogados investem contra o Poder Judiciário e o
Ministério Público. Eles têm razão apenas com relação aos “penduricalhos” remuneratórios
que procuram contornar o “teto” salarial imposto aos ministros do Supremo
Tribunal Federal, agora — a partir de janeiro de 2017 —, no valor de
R$39.293,00.
A “suculenta” cifra sugere nababesca riqueza mensal, como se ela viesse
inteirinha para o patrimônio do juiz, ou do promotor, vez que ambos costumam
ser igualmente remunerados.
Essa gorda e invejável remuneração máxima sofre, porém, um forte regime
de emagrecimento já “na boca do caixa”, antes dela chegar às mãos dos
magistrados, tornando-se algo efetivamente “usufruível” pelos destinatários.
Vejamos, a seguir, se esse teto salarial é realmente milionário.
Friso que na demonstração abaixo levo em conta apenas o ganho mensal dos
juízes que mais recebem no país, os, digamos, “marechais” togados — onze
ministros do Supremo Tribunal Federal. Os demais magistrados, a “tropa” — cerca
de 15 mil “soldados” de primeira instância —, ganham progressivamente menos,
conforme a escada remuneratória da carreira.
Vejamos o que acontece com a mais alta remuneração do magistrado
brasileiro. Antes, porém, para quem não sabe, uma rápida explicação sobre a
carreira dos juízes.
Magistrados de carreira começam — após difíceis concursos públicos de
títulos e provas, em geral prestados mais de uma vez — como juízes substitutos
de primeira instância. Muitos candidatos desistem, depois de várias tentativas.
Os aprovados, subindo gradativamente na carreira, de entrância para entrância,
são forçados a mudar de residência, a cada promoção, porque o juiz é obrigado a
residir na comarca em que trabalha. Isso, obviamente, é um incômodo para ele e
sua família, o que explica porque muitos bacharéis, bem preparados, prefiram
advogar no conforto dos grandes centros, ou nas cidades onde cresceram.
Convém também esclarecer que muitos juízes se aposentam sem chegar à
segunda instância, onde ser transformariam em desembargadores. Não chegando ao
ápice da carreia, sua remuneração será bem inferior à do ministro do STF.
A propósito da chegada ao “topo”, é um tanto paradoxal que, por exemplo,
na atual composição do STF, dos onze ministros, só três deles se tornaram
magistrados após concurso público de ingresso na carreira: o decano Celso de
Mello, que ingressou — em 1º lugar — no Ministério Público de São Paulo; Rosa
Weber, aprovada, com distinção, na Justiça do Trabalho, e Luiz Fux, que passou,
também em 1º lugar, em concurso do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro. Os oito Ministros restantes são oriundos da advocacia, do magistério,
ou do Superior Tribunal de Justiça, onde foram juízes, mas não de carreira,
isto é, não concursados. Estavam no STJ por força do quinto constitucional.
Trabalhavam antes como advogados ou promotores de justiça escolhidos pelas
respectivas classes para “oxigenar” os tribunais com gente de fora da
magistratura, com diferente visão dos fenômenos sociais.
Não obstante o conjeturável “calo”, ou “boca entortada pelo cachimbo
profissional”, tais juízes, no geral, têm se revelado bons julgadores,
comprovando a capacidade de adaptação do ser humano a novas profissões. Se
houver algum resíduo de influência da profissão anterior, essa influência vai,
com o tempo se enfraquecendo, ainda que possam, talvez, não desaparecer
inteiramente, o que nem sempre é um mal. Mais difícil de modificar é o temperamento
de todo juiz, não a profissão exercida antes.
A propósito dessa maior proporção de não-concursados no STF, convém
alertar os juízes de carreira — aqueles com ambições mais altas — que não se
limitem “apenas” a trabalhar incansavelmente, julgando o máximo de processos
possível no mês, gastando a totalidade de seu tempo e energia no trabalho de
ler processos, pensar e decidir dando o melhor de si, em estilo direto e
simples, sem “adornar” seu trabalho com citações eruditas. “Curto e grosso”, no
bom sentido, mas certeiro, embora sem brilho teórico.
Esse trabalho, algo anônimo, infelizmente não impressionará o mundo
político na hora de escolher nomes para ocupar as vagas nos Tribunais
Superiores, em Brasília. É aconselhável, quase imprescindível, fazer cursos no
Exterior, escrever livros, artigos, aprender novas línguas, lecionar,
frequentar mestrados, doutorados e academias. Transcrever, nas suas sentenças,
doutrinas estrangeiras e, finalmente — cereja no bolo —, ser sociável. Não só
ampliando seus conhecimentos de Direito Comparado mas também criando
“visibilidade jurídica”, sem a qual nunca será lembrado no mundo político, ou
jurídico-político. Modesto demais, será considerado “um juiz provinciano”. Em
suma, sem “vitrine”, seu futuro não será “brilhante”. Será apenas um “pé de
boi”; esforçado, “até bom juiz, mas provavelmente de não muitas luzes”. Não lhe
bastará ser infatigável abelha, precisa também ser vagalume.
Ocorre que essa “vitrine” custa dinheiro. Viagens, estadias, cursos,
aulas particulares não saem de graça. Daí a necessidade do juiz ganhar bem.
Pelo visto, a mídia acha que todo juiz tem a obrigação de fazer voto de
pobreza. Ele, na quase totalidade, não faz voto nem de pobreza, nem de riqueza,
mas acha-se com o direito de manter seus filhos — convém, por economia, ter no
máximo dois, e olhe lá... — em escola particular, geralmente cara; contratar
plano de saúde que dê cobertura total à família inteira; pagar serviço
odontológico de qualidade, etc. Enfim, manter um padrão de vida de classe
média.
Se o juiz passa a viver no estilo de São Francisco de Assis — parecendo
um “pobretão” —, sabe o leitor como será visto pela população em geral? Como um
“juizéco”, ou “funcionariozinho mequetrefe”, tal a automática associação de
ideias entre “dinheiro ” e prestígio profissional. O taxista, o açougueiro, o
cozinheiro, o PM, vendo o juiz malvestido entrando no seu carro velho logo
pensa: “Esse cara não pode ser mais importante do que eu...”
Já o arrogante milionário, chefão do tráfico de entorpecente, mesmo
preso, vendo uma foto do juiz que o condenou, será mais severo: — “Foi esse
mendigo, esse bos..., esse inseto — incapaz de ganhar dinheiro como homem de
verdade —, que me condenou? Que ingrato! Será que ele não sabe que só continua
vivo porque eu não decidi mandar apagá-lo?”
Voltando ao ganho dos ministros do STF, o Imposto de Renda, descontado
na fonte, de 27,5%, “come” R$10.805,57. A esse desconto some-se o percentual de
11% (R$4.322,23) para efeitos previdenciários, mesmo que o magistrado já
esteja aposentado (?!). Enfim, resta o ganho mensal, desfrutável, de
R$24.127,00.
Ocorre que quanto mais velho o indivíduo, mais alta a mensalidade
cobrada pelos planos de saúde. Para não ter que depender do SUS — talvez
deitado em corredores de hospitais, sujeito a infecção hospitalar —, ele vê-se
forçado a contratar planos de saúde que deem cobertura total, para todas as
doenças.
Falei em cobertura? Nem sempre ela funciona inteiramente. Os médicos
mais prestigiados não mais atendem aos segurados dos planos de saúde, porque a
remuneração deles, pelos planos, é muito baixa. Só atendem com consultas
particulares, cobrando entre seiscentos e mil reais cada consulta. Tenho
conhecimento próprio do assunto. E o “reembolso” é mínimo, ridículo.
Por que, mesmo assim, há necessidade de um plano de saúde? É que corpos
humanos antigos, ainda caminhando, têm o mau costume de manifestar os mais
variados sintomas, a exigir exames e mais exames, com tratamentos sofisticados.
Como os juízes, na ativa ou aposentados, na sua maioria, são conservadores em
termos conjugais, o mais comum é que, idosos, tenham como esposas senhoras
igualmente idosas, que também merecem uma boa cobertura de saúde, caríssimo.
Como mero exemplo, aposentado, pago à SulAmérica, mensalmente, a quantia
de R$5.850,00, pelo casal. Resta, portanto, como quantia “gastável”, o valor de
R$18.316,00 para o ministro do Supremo. E não seria justo, nem cristão, que os
magistrados fossem aconselhados — por mero cálculo financeiro —, a trocar periodicamente
de esposa, casando com mulher nova, com isso pagando mensalidade menor no
plano. Trocas semelhantes costumam agravar a situação do romântico tardio,
porque esposa desprezada fica com direito de receber uma pensão bem superior ao
lucro oriundo da diminuição da despesa com troca de mulher idosa por mulher
nova. E se o magistrado foi imprudente a ponto de ter que pagar duas pensões
alimentícias, seu destino financeiro será horrendo. Viverá angustiado, suado,
pendurado em bancos, tendo que lecionar — a única atividade permissível ao juiz
em atividade — e apertar o cinto continuamente na. Mas, com o número excessivo
de processos aguardando julgamento, é até impatriótico o juiz dedicar horas
preciosas preparando e dando aulas. Quanto mais aulas, menos sentenças.
Outra despesa, praticamente inevitável, que vai “roendo” o vistoso “teto
salarial do STF”: a contratação de uma empregada doméstica mensalista. Um
salário razoável para um doméstica, de R$1.300,00 transforma-se em R$2.000,00,
considerando os encargos de INSS,FGTS, 13º, etc. Restam, portanto, R$16.316,00.
Muitos magistrados moram em condomínios. Tendo em vista despesas
condominiais e frequentes “extras” no prédio, pagando, digamos uma despesa
mensal de R$2.000,00 mensais, sobram R$14.316,00. Agora, meus amigos, se ele
tiver filhos em faculdade particular — nem todos podem entrar na USP — o que
sobra ficará próximo, ou abaixo, do ganho de um taxista com carro próprio.
O custo mensal em uma faculdade particular de medicina, em outra cidade,
não sai por menos de R$7.500,00, incluída a despesa com estadia. Se forem dois
os filhos nessas faculdades, terá que cobrir o rombo com empréstimos bancários.
Magistrados não se locomovem de bicicleta. Usam, ou deveriam usar,
automóveis particulares. Além disso, têm o mau hábito de comer, vestir, e todas
as despesas inevitáveis nas grandes cidades. O que sobra, raramente “sobra”,
como comprova a situação de centenas ou milhares de juízes endividados em
bancos.
No teto salarial do funcionalismo há muita demagogia. Prefeitos e
governadores, até de estados importantes, recebem salários que só podem ser
considerados como “simbólicos”. Esse simbolismo é premeditado. Permite que o
governador, quando nega aumento ao funcionário de alta especialidade sempre
pode dizer, escorado na hipocrisia remuneratória: “— Como?! Você, engenheiro
nuclear, quer ganhar mais do que eu, governador?!”
Se, porém, a justiça brasileira fosse rápida e funcional a população,
muito grata, não faria críticas quanto à sua remuneração. Até faria questão de
que os magistrados recebessem um salário superior ao atual. Isso porque a
população, frustrada com conflitos de toda ordem, está com uma sede acumulada
de justiça, que não pode ser excessivamente lenta. E por que ela não é nem
rápida, nem eficaz?
A resposta é óbvia: porque nossa legislação processual é disfuncional,
elaborada por quem não nunca foi juiz. Porém, como este artigo já está longo
demais, cuidarei desse assunto, em outro artigo, daqui a alguns dias.
Voltando às críticas, na essência verdadeiras, contra os
“super-salários”, o que tenho a dizer, com resumida franqueza, é o seguinte: os
“penduricalhos” são realmente artifícios para contornar um “teto” que a maioria
dos juízes considera mera demagogia salarial. Eu, pelo menos, assim considero,
mas também não aprovo algumas quantias exageradas, mencionadas na mídia, pagas
em casos individuais.. Não as examinei, matematicamente, mas parecem
altíssimas. Se referem-se a férias não gozadas, é o caso de a lei estabelecer
limites para tais acúmulos de férias, pois se alguns desembargadores nunca
utilizam suas férias e ainda estão vivos, sadios, elas, pelo visto não são
necessárias.
Examinando, pela rama, reportagens comparativas de ganho nos jornais,
parece-me que elas não refletem bem a realidade. Artigo de Alexa Salomão, de
20-8-16, no Estadão, diz que os juízes da corte máxima de Portugal ganham, por
ano, R$134.000,00. Por mês, seria um salário, baixo, de R$11.166,00. Se
descontados, como no Brasil, R$4.298,00 (IR e Previdência), restariam apenas
R$6.869,00. Provento ridículo para um juiz da corte mais alta de Portugal.
Quase isso eu pago mensalmente na SulAmérica, só no plano de saúde, como
relatado no início.
Fala-se que o ministro da Corte Suprema americana ganha pouco. Pode ser,
mas isso é facilmente explicável. É que influentes advogados, integrantes de
grandes escritórios, quando os deixam, para trabalhar no órgão judiciário
máximo, talvez continuem com alguma participação nos lucros do escritório, que
não encerra suas atividades só porque seu “cabeça” passou a condição de
ministro da Corte Suprema. Esse escritório, uma sociedade de advogados,
torna-se particularmente atraente para novos clientes.
Não sei bem como funciona a coisa, nos bastidores, mas não acredito que
os ministros da Suprema Corte americana vivam pobremente. Quem faz tais
pesquisas comparativas talvez não conheça a fundo a realidade do país. Por
exemplo, os ministros americanos têm assistência médica paga pelo governo? Para
se saber, com exatidão, como são remunerados, comparativamente, os juízes nos
vários países, seria preciso investigar os bastidores de cada Estado, não
apenas pedindo uma informação burocrática, teórica, para comparar os ganhos com
o nosso teto salarial. Talvez, também em outros países, os magistrados procurem
aparentar um ganho, direto e indireto, menor do que o verdadeiro. Faz parte da
natureza humana.
Os juízes brasileiros, que tanto estudaram, pretendem continuar sendo
“classe média, média”, e não “média, baixa”. Constataram que, com as despesas
mensais familiares — todas normais na classe média, como exemplificadas no
início —, só escaparão de um progressivo endividamento bancário criando os tais
“penduricalhos”. Sem eles, teriam que tirar filhos de escola particular, usar
contratar planos de saúde mais restritivos na cobertura, etc.
A Constituição Federal não estabelece qual o “quantum” do “teto”. Diz
apenas que ele não pode ser ultrapassado, seja qual for o argumento. O assunto,
portanto é econômico e político, e assim terá que ser tratado.
A única solução para esse problema, que desprestigia enormemente um
Poder, o Judiciário — que, sendo desarmado, depende muito da forma como é
encarado pela população —, está na criação de uma Comissão Especial, dos três
Poderes, na qual será estudada uma elevação do vigente “teto” com o simultâneo
cancelamento de todos os “artifícios” remuneratórios atualmente pagos aos
magistrados em atividade. Os aposentados não recebem esses acréscimos, que eu
saiba.
Em “retribuição” a esse aumento, essa mesma Comissão Especial — composta
de pessoas indicadas pelos três poderes — se comprometerão a apresentar, em
três meses, um conciso e claro projeto de lei que modifique a legislação
processual, penal e civil, atualmente em vigor, visando apenas acelerar e dar
real eficácia à prestação jurisdicional. A legislação trabalhista não será
cogitada nessa comissão porque o assunto já está sendo discutido no Congresso
Nacional.
Aprovada a conclusão dessa Comissão — que tratará da elevação ou mesmo
da abolição de “teto”, e fará as alterações processuais visando a celeridade —,
o projeto será enviado ao Congresso para votação. O que for aprovado, no
aumento, cancelará o conjunto das vantagens que ultrapassam o teto então em
vigor. Todos os “penduricalhos” serão cancelados, o que agradará a população.
Alguém poderá dizer que “isso tudo é muito complicado”. É e não é. Tudo
depende de como serão tratados os dois temas e quem serão os representantes dos
três poderes nessa Comissão, que não deve ter mais de três ou cinco representes
para cada Poder, com isso evitando o inevitável acúmulo de vaidades,
protagonismos e autopromoção.
Devido à extensão deste artigo, não menciono quais seriam as alterações
processuais saneadores do grande mal da morosidade. Posso apenas garantir ao
leitor que a morosidade da nossa justiça é muito mais causada pela
disfuncional, ingênua e vesga legislação do que pela suposta preguiça de nossos
juízes. Há muita coisa, na justiça, que não passa de ritual inútil.
A mídia parece ignorar que o juiz — na área processual, principalmente
—, é um escravo da lei. Ele frequentemente tem que trabalhar como que
constrangido por uma “tornozeleira” mental. Não pode suprimir um caminho
procedimental que está na lei. E não estou aqui incentivando o abuso do
“ativismo”, remédio que só deve ser usado com grande moderação, porque as
cabeças não são iguais e a justiça não pode ser uma arca cheia de bússolas,
cada qual com um norte diferente.
Em futuro artigo, direi o que deve ser feito para “acelerar”. Com
desculpa pela pretensão.
Francisco Pinheiro Rodrigues - 10-03-2017