O presente texto é um adendo ao meu artigo — “Inacreditável:
A obrigatoriedade da presença do advogado no inquérito” — publicado, dias
atrás, no meu blog: “francepiro.blogspot.com”.
Preocupado com a possibilidade da sanção
presidencial ao Projeto de Lei 78/2015, já aprovado na CCJ do Senado,
instituindo o direito do advogado de estar presente durante as investigações do
seu cliente — fazendo requerimentos, discordando e agindo como se estivesse em
um processo judicial —, apresentei, em linguagem bem coloquial, meus argumentos
contra essa aberração jurídica. Frisei que esse deslocado “contraditório”
praticamente travaria, em definitivo, a difícil luta contra o crime organizado,
notadamente o desvio bilionário do dinheiro público. O poder do enorme dinheiro
desviado, combinado com o “direito torto” de atrapalhar a investigação no
inquérito policial seria sentença de morte na intenção de moralizar o que
ocorre nas entranhas da República.
No referido artigo não mencionei, por desnecessário
e dispor de pouco tempo para redigi-lo — eu viajaria poucas horas depois — o
inciso LV do art. 5º da CF. Todavia, trocando depois e-mail com um respeitado constitucionalista
— que não trabalha na área penal mas dispõe de vasto conhecimento de nosso
Direito —, ele pareceu ter alguma dúvida quanto ao acerto de minha opinião. Isso
porque indagou qual a minha intepretação sobre o art.5º, LV da Constituição
Federal, que assegura o direito de defesa dos “litigantes, em
processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral”.
Como o referido inciso do art. 5º da CF pode, se mal
interpretado, conferir credibilidade ao PLC 78/2015, facilitando sua
transformação em lei, com a sanção presidencial, apresso-me a acrescentar
algumas palavras sobre a compreensão do inciso em referência.
Como já disse no artigo anterior, o inquérito policial,
usado como tal — na sua “pureza” doutrinária —, não é nem “processo” judicial
nem “processo” administrativo. É apenas uma investigação, uma pesquisa, uma
busca da realidade fática. Peça
informativa, sigilosa e inquisitória. Não “julga” (tecnicamente) nem condena
ninguém, apenas colhe dados sobre a existência de um possível crime e quem
seria seu autor. Como não condena — nem absolve... — não pode ser classificado
como um “processo”. É, essencialmente, apenas “procedimento”, uma verificação
de fatos que não classifica, juridicamente, qualquer pessoa como criminosa.
Se algumas
informações, transmitidas pela mídia — essencialmente curiosa, “abelhuda” —,
criam um “clima” psicológico desfavorável a um investigado de grande projeção
social, isso é uma contingência inevitável — embora incômoda — de toda
democracia.
A comunidade tem o direito de saber o que está ocorrendo
longe de suas vistas individuais, seja qual for o prestígio das pessoas
investigadas. Qualquer notoriedade “boa”, invejável — política, social,
econômica ou intelectual —, difundida pela mídia —, é sempre benvinda a seu
portador. Todos desejam pelo menos alguns minutos de fama. Mas quando as
notícias são ruins, com fortes indícios da ocorrência de um crime, o homem
“famoso” não pode exigir silêncio da mídia, nem que a investigação policial só
ocorra com a presença e interferência do seu advogado que, obviamente, será tendenciosa.
É o outro lado da mesma moeda, isto é, a alta visibilidade. E o investigado poderá
provar, em juízo, depois da investigação, que foi acusado injustamente. No
inquérito nem há, na verdade, um “acusado”. Pode haver apenas um suspeito. E
muito poucas regras cerceiam tais investigações.
Não houvesse um
regramento limitativo, um procedimento qualquer no inquérito policial, este poderia
fluir por décadas atormentando qualquer cidadão até o fim de seus dias. Tais
regras “procedimentais”, porém, não transformam o inquérito em “processo
administrativo”, como aquele que — por exceção legal expressa —, autoriza a demissão
de um funcionário público que cometeu atos ilegais. Ou o “processo
administrativo” — bem rotulado como “processo” — que permite a expulsão legal
de um estrangeiro indesejável. Nesses dois casos, por exceção legal, o “mais
que inquérito” funciona como um verdadeiro “processo administrativo”— obrigando
o contraditório — em razão da pressa em resolver uma situação que se tornaria
vexatória, para a administração, se ela tivesse que aguardar por vários anos a
expulsão de um estrangeiro indesejável, em decisão judicial que poderia chegar até
o STF.
Para dispensar o titular da ação penal pública — o
engravatado, educado e intelectualizado promotor —, do trabalho mais “rasteiro”,
talvez até “muscular”, de vigiar, recolher provas e perseguir fisicamente
delinquentes — frequentemente armados e perigosos —, a lei criou o inquérito
policial como mera peça auxiliar de informação para o Ministério Público. Mas
para poder exercer essa função física de buscar a verdade, onde ela estiver, o
condutor do inquérito precisa agir com plena liberdade, sem outros limites
além daqueles estabelecidos pela legislação, como é o caso da proibição do uso
de provas ilícitas.
O sigilo é necessário porque se a investigação for
acompanhada, em tudo, por advogados do suspeito, o profissional se esforçará —
do contrário não seria bom advogado — em alertar seu cliente. Este tudo fará
para esconderá ou destruirá as provas que o incriminam.
A Constituição
Federal certamente não tem como meta atrapalhar as investigações que buscam
provas de infrações penais. Ela seria incoerente se obrigasse um único órgão a
atuar com objetivos contraditórios: a polícia procurando provas de um crime e
os advogados, acompanhantes, procurando esconder tais provas.
A informalidade, ou liberdade, na investigação — em que
não há “réu”, ou “acusado”—, está comprovada quando, por exemplo, um marido
chega chorando a um delegacia dizendo ao delegado que encontrou sua mulher
morta a tiros. Ele suspeita que sua mulher tinha um amante e que esse amante
deve ser o assassino, conforme detalhes que menciona. Caso o delegado
conclua, no inquérito, após várias diligências, que o autor do homicídio é o
marido e não o suposto amante da mulher, nada impede que peça a prisão
provisória ou preventiva do marido. Essa fluidez investigatória não ocorre nos
processos judiciais, criminais, com trocas de “réus”, conforme evolui a
investigação.
Esse absurdo que aguarda aprovação, sanção, da Presidente
Dilma pode ensejar situações até mesmo
cômicas. Dou um exemplo: a polícia descobre que notório narcotraficante, mesmo
preso, está ordenando o assassinato de pessoas fora da cadeia. A polícia abre
investigação, após o que aparecem na delegacia alguns advogados, representantes
do traficante, que discordam de tudo o que o delegado pretende fazer.
Apresentam requerimentos e, não sendo atendidos pelo delegado, solicitam
providências da OAB e do Judiciário, via habeas corpus, mandados de segurança,
e o que mais imaginarem. Desatendidos pelo delegado, argumentam que a lei é
genérica, vale para todos, não protege apenas pessoas de alta posição social.
Alegam que é direito do cliente não ver aumentado seu tempo de reclusão.
Não sei quem teve a “brilhante” ideia do PLC 78/2015. O
projeto foi assinado pelo Deputado Arnaldo Faria de Sá, um conhecido defensor
dos aposentados, mas é comum que a ideia de um projeto venha de outra fonte. Talvez
a intenção do autor da ideia tenha sido boa, por conhecer, melhor que a mídia,
a vida de algum especial cidadão mal compreendido. Isso pode ocorrer, mas faz
parte da vida. Mas se o figurão for inocente, certamente será absolvido, porque
o ônus da prova cabe à acusação, o que já é um privilégio, acrescido do “in
dubio pro reo”.
A luta contra a
criminalidade organizada não pode ficar travada apenas porque, alguém talvez
esteja sendo investigado injustamente. Inquérito é apenas investigação.
Processo é acusação e defesa. Não vamos confundir as coisas.
O Legislativo é um
Poder, como os demais, que exige vigilante acompanhamento por parte dos
representados. Esperar que suas “ideias” só sejam discutidas depois de
transformadas em legislação é um convite à demagogia, incoerência, impunidade,
desonestidade e anarquia.
Pensando bem, o
Legislativo exige mais vigilância preventiva que os demais Poderes porque
produz normas — leis — que obrigam de imediato, gozam da presunção de validade,
e demoram demais para serem anuladas ou alteradas — quando a falha origina-se
da falta de visão e juízo, qualidades muito subjetivas e pouco difundidas.
Todos reclamam da falta de memória, mas ninguém se queixa da falta de juízo.
(03-01-2016)