sábado, 2 de julho de 2011

A ordem de prisão de Kadafi e o Estatuto de Roma.

O Tribunal Penal Internacional solicitou, a todos os países, a prisão de Kadafi por crimes contra a humanidade. Com a devida vênia, ou o Tribunal altera suas normas processuais ou seu prestígio sofrerá sucessivos e imerecidos abalos. O primeiro ocorreu com a ordem de prisão, até hoje não cumprida, do presidente do Sudão, Omar Bashir, que continua viajando para países de sua escolha, sem ser incomodado. No dia 28 de junho de 2011 foi recebido, com as honras de estilo, pelo presidente chinês. Com Muamar Kadafi poderá ocorrer coisa semelhante.

Onde está, a nosso ver, o ponto frágil da atual sistemática processual do Tribunal Penal Internacional? Na possibilidade — e até mesmo obrigação, leia adiante —, de prender chefes de estado antes de qualquer julgamento. Isto é, primeiro o Tribunal prende; depois julga. Isso contraria a tendência jurídica geral, precavida contra prisões longas de acusados antes de serem julgados. Se o réu é idoso e morre na prisão, antes de provada sua culpa — tais julgamentos podem demorar vários anos, porque são muitas as testemunhas e as defesas exaustivamente minuciosas — seus seguidores políticos — sempre os haverá — poderão dizer, faltando ou não com a verdade, que o defunto réu foi apenas um mártir, vítima de um sistema judicial viciado pela parcialidade política.

No Brasil, por exemplo, a legislação e a jurisprudência predominante (que, por sinal, precisa ser modificada porque é branda demais) dizem que somente com o trânsito em julgado de uma condenação é que um réu pode ser considerado culpado e, portanto, preso. A prisão preventiva só é tolerada como garantia de futuro cumprimento de decisão condenatória, isto é, quando o réu não tem residência fixa, nem meios de subsistência e há indícios sérios (?!) de que o réu vá fugir quando souber que sua condenação, finalmente, transitou em julgado. Mesmo os juristas brasileiros de mentalidade mais severa — preocupados com a impunidade do colarinho branco — sugerem ao legislador que o réu só deveria aguardar, detido, os julgamentos posteriores a uma ou duas condenações iniciais. Uma ou duas condenações, com exame do mérito, seriam, por si só, um indício fortíssimo da culpa do réu. Já o TPI, nos casos de Bashir e Kadafi, manda prender chefes de estado sem qualquer condenação anterior.

Diz o art. 63 do Estatuto de Roma que “1 - O argüido” — réu — “terá de estar presente durante o julgamento”. Aí está a explicação da inconveniente paralisação dos processos mais importantes, estimulando uma aura mundial de ineficácia de um Tribunal muito necessário para o diminuir a impunidade de criminosos poderosos que não foram punidos em seus respectivos estados. Esse bom propósito — de punir quem merece — precisa se adaptar à realidade.

E que realidade é essa? A de que chefes de estado, envolvidos em lutas sangrentas — matando abusivamente, ou se defendendo, ou fazendo as duas coisas — jamais comparecerão voluntariamente ao Tribunal Penal Internacional. E o TPI encontra dificuldade prática para prender o réu porque o país em que ele se encontra — o próprio ou outro em que está de visita — não autoriza a detenção, usando a soberania como justificativa. Mesmo que o réu, eventualmente, sinta vontade de comparecer para se justificar— fato pouco provável —, ele não se atreverá a, desnecessariamente, por em risco sua liberdade. Sabe que nesse Tribunal haverá, para ele, uma porta de entrada, mas não de saída. Suas vítimas, quase sempre desconhecidas individualmente — para ele — já terão sido ouvidas. O Tribunal está influenciado — para não dizer sinceramente indignado —, desde o início, pelos relatos bárbaros que ouviu, sem os quais o processo não teria começado. Nessa fase inicial, salvo engano, não são ouvidas as testemunhas do réu.

O juiz instrutor, quase com certeza, determinará a prisão do acusado que compareceu, antes ou depois de seu depoimento, como garantia de que ele estará presente na fase decisiva — a do julgamento. Neste, como já mencionei, ele “terá de estar presente”(art.63). Todo chefe de estado, na situação de réu, terá a impressão — nem sempre errada — de que, por trás de todo aquele arcabouço jurídico há um tanto de interesse político — como sempre há, em dosagem variada. Quando a violência política ou religiosa é deflagrada, difícil é que não existam ataques brutais de ambos os lados. Acresce que nem todas as barbaridades que ocorrem em vastas regiões deflagradas decorrem de ordens emanadas do chefe de estado, tirano ou não. Subordinados sádicos aproveitam a oportunidade para dar vazão às suas tendências.

Como já disse em artigo anterior, Kadafi não é modelo de governante. É um déspota, nem um pouco esclarecido. E dizem que tem milhões depositados no exterior. Um provável fardo para seu país. Apenas não se sabe — para se apoiar ou não, juridicamente, os revoltosos — qual é o grau de apoio espontâneo que recebe do conjunto da população. É possível até, que, em tese — em tese —, tenha mais seguidores que inimigos e, nesse caso, a OTAN estaria juridicamente errada, não respeitando a “usual”, vigorante soberania, conceito que, embora um tanto agonizante — porque enseja abusos evidentes —, ainda figura nos manuais jurídicos com como norma a ser respeitada.

Recapitulando, é preciso que o Tratado de Roma sofra modificações no seguinte sentido: “citado” — ou ato equivalente — o réu será convidado a comparecer. Se isso não ocorrer, o processo contra ele segue até o fim, com ou sem prisão preventiva decretada, a critério do Tribunal. Se ausente, seus advogados farão sua defesa. Se o Tribunal quiser ouvir suas explicações verbais — para “sentir” a sinceridade — poderá ser interrogado à distância, frente à televisão ou monitor de computador. Há tecnologias facilmente disponíveis para estudo da “linguagem corporal” da pessoa que depõe, mesmo distante milhares de quilômetros. Perguntas e respostas poderão ser acompanhadas, ao vivo, por todo o planeta, emprestando mais transparência ao processo. Caso, porém, o Tribunal faça questão de ouvi-lo, fisicamente presente no Tribunal, terá que dar garantia absoluta de que não o prenderá, caso compareça para um interrogatório. Dificilmente, porém, o réu acreditará nessa promessa.

Proferida a condenação, só aí caberá uma legítima “caça ao criminoso”. Talvez até, futuramente, com a utilização de “comandos”, algo assim como ocorreu com Adolfo Eichmann, seqüestrado na Argentina pelo Mossad, . Será uma prisão com muito mais aceitabilidade global — e o TPI visa uma justiça global — porque pelo menos teria havido um julgamento público, com ampla defesa disponível ao réu.

Melhor assim, com essa nova sistemática, do que um processo criminal importantíssimo ficar parado — como ocorre agora — só porque o réu não comparece. E convenhamos, a presença do réu não é tão importante assim para o julgamento de um caso. Quase sempre ele mente em seu próprio benefício. E seus advogados, mais experientes do que ele, sabem, melhor o que convém, ou não revelar.

Há certos rigores processuais que, paradoxalmente, por serem ameaçadores demais, colaboram com a impunidade. É o caso, em exame: como não se consegue prender preventivamente o réu poderoso, este pode se gabar de não ter sido julgado, gozando da presunção de inocência.

Não sei se os argumentos acima desconhecem algum detalhe, jurídico ou filosófico, capaz de justificar a atual sistemática que, no final das contas acaba, involuntariamente, favorecendo grandes criminosos. Caso haja algum argumento forte em favor do atual sistema, é preciso que a opinião pública e jurídica, o conheça. Inclusive para examiná-lo e verificar se tem o apoio do bom-senso, esse tempero que não pode estar ausentar da atividade judicante. Principalmente nos julgamentos internacionais com componentes políticos e religiosos, em que a opinião do certo e do errado está envenenada por preconceitos ministrados desde a infância. Além do mais, o Conselho de Segurança das Nações Unidas não é um mosteiro de religiosos apenas preocupados com a salvação das almas. E foi dele que partiu o pedido, dirigido ao TPI , para que prendesse o antipático e “grosso” Kadafi.

Que o presente artigo sirva, no mínimo, para provocar reexame de um detalhe processual importantíssimo para o prestígio e bom funcionamento de um Tribunal concebido com a melhor das intenções.

(01-7-2011)